Os fatos reacendem como cigarros mal apagados. Os fardos, as vidas e as curvas de um dia ao sol. Como um farol, cegou-me mas iluminou minha mente. Persistente, ela se faz de donzela, porém, no fundo é uma viúva a negra a devorar-me no gozo. Não sabia onde era meu pouso ou se o fosco de meus olhos tornaria a figurar uma ilustração advinda da ilusão de que mudei. Já fui rei, santo, caótico e sereno. O pequeno se torna grande, como qualquer lei da vida, minhas lembranças sempre cobrarão uma dívida pelas más escolhidas ações. Os tendões de Aquiles se romperam, no instante em que a flecha atravessou meu espírito. Um tiro sem som e sangue, apenas um curativo figurativo na esperança que o sangramento estanque e tudo volte a não passar de mera rotina. “Minhas vidas, d’onde vêm tuas sinas e teus amores?” O silêncio me respondera incognitamente, deixando ainda mais confusos meus pudores. Os ardores me corroeram e me trouxeram até este singelo lapso. Atemporalmente, as memórias me renderam aos lamentos e êxtases que as sensações me provocaram em cada cena. Sentado aqui, ainda continuo a reviver sem controlar meu caminho. Espinhos, flores, jogadores e apostadores, todos se confundem no quadro que formou-se diante de mim. Talvez eu sofra do mesmo tormento que assolou Dalí, ao ver seus relógios derretendo no deserto de seu sonho Freudiano. Fisgando as horas, o tempo se derreteu e voltou à liquidez da água que tende a poder se transformar em vários estados. Os quadros, as obras, as horas, as tintas e as pintas de tudo que se faz diante dos meus olhos, misturou-se fazendo tudo ficar branco. Claro demais para ser olhado, e incansavelmente belo para parar de ser admirado. O arado humano atravessou minha minha raízes, plantando as sementes do passado que tornam a renascer em novos fatos a serem colhidos pelo futuro. O escuro nunca mais se veio, pois o sol ardeu além das 24 horas que o agora se faz dia. À beira da pia, as louças se suicidavam e se quebravam loucamente no fritar dos meus neurônios em total estado de parafuso. Difuso, confuso e totalmente complexo, o nexo se desprendeu da realidade, dando risada dos meros decentes que encaram a vida como uma máquina sem controle. A pole, no grid de corrida, tornou a ser a última posição conhecida para mim, egocêntrico convicto e invicto de todos os adversários invisíveis. Os incríveis astros já mortos, desenharam em seus tortuosos pensamentos, os lamentos que eu tenho, mesmo antes de me fazer existir. “De onde há de vir toda essa previsão?” O oráculo mentiroso, ligou para as cartomantes e transformou as previsões de um farsante, na mesma verdade que a vaidade de querer sempre o melhor resultado. De bom grado, olhei minha pulseira larga, paradoxalmente ligada à lembrança de que o passado é largo, vasto, porém me alcança, me prendendo na desaventurança de permanecer presente. Descrente de tudo que era abstrato, cuspi no prato que comi e pus-me a rir de tudo que se dizia real. Bem ou mal, tudo se fez ignorante, enquanto meu amigo bigodudo falava sobre pintar novos rinocerontes em um deserto com lágrimas escorrendo pelos olhos sem rosto. O oposto se tornou semelhante, encarando os meus olhos febrilmente loucos, e aos poucos formaram um sorriso me dizendo: “tudo que persiste, resiste a sua negação. Em vão, é todo e qualquer pensamento que te ponha contra o muro sartriano. Veja! Os buracos das balas ultrapassam o corpo, mas não a alma, e nem o muro do passado. Meu caro, esqueça os sarros que a vida lhe tira, e de-lhe o que ela mais precisa: a própria vida.” Em plena distopia, cai distorcidamente em um vórtice artístico, por onde tudo se funde, nada se entende, mas em sumo, se compreende. O atraso era só um bizarro pensamento de quem achava que controlava o tempo. Einstein ria e dançava exclamando que o tempo não é objeto para se possuir, e sim lugar por onde te deixam andar. O lar era rua, a casa era o céu e suas lâmpadas eram as estrelas espalhando o brilho eterno de uma mente sem lembranças. A concordância disso tudo, se deu no segundo em que percebi que não havia saído do meu habitat. Minha mente é que estava a fervilhar um transe diante do trânsito das lembranças e previsões que a obviedade estampava em meu estado filosófico. O ócio é quem apareceu para proferir sua sentença: “a desavença, meu jovem rapaz, se faz no teu próprio ser. Não há no que crer, pois tudo irá acontecer e a memória há de te lembrar que ao anoitecer você vagará no limbo de seus pesadelos. Medos e vontades são apenas os enlaces das chaves que abrem as portas do nada. A escada não sobe e nem desce. Nada se esquece e tudo se transforma. As lembranças tomarão forma de futuro no momento em que torná-las a negar. Vagar, andar, nada te fará tão vivo quanto pensar. Isso irá te açoitar, mas no fim do espancamento, nada existirá além do seu próprio pensamento. Escravo! Você é escravo do espírito livre.” Em pleno declive, peguei uma arma e decidi acabar com tudo aquilo que pensava. Pus na boca e engatilhei seus cartuchos. No momento oportuno para a morte, a sorte se fez diante de mim e disparou seu acaso. Nem um tiro foi disparado. Larguei meu revólver imaginário e resolvi substituí-lo pelo tinteiro. Aos poucos, vi que o prêmio de uma vida atormentada é saber que tudo é o nada preenchido do vazio de procurar existir. Sorri e poetizei o cotidiano. Adiei o fim dos meus anos para uma próxima página. Se estarei vivo para escrever minha execução, ainda não sei. Apenas lhes direi que nada farei até que meus peões tornem-se Reis e minha donzela de renda aos meus caprichos. Sou o único obelisco a quem devo adorar. Nestas palavras diluídas pude desenhar que não passo de um vagabundo a riscar a minha extrema vontade de respirar. Eu só existo, porque tenho do que lembrar.
Yuri Cidade
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