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Foto do escritorYuri Cidade

A real fábula de natal

Sempre que chega a época de Natal, as pessoas resolvem ignorar as besteiras que fizeram o ano inteiro e vira todo mundo santo. Ah que tantos Santos temos, não é mesmo? Até eu bebo e fumo menos. Mas tal data não me traz boas lembranças. Alguns anos atrás, quando minha vida se resumia em 3 meses de aluguel atrasado num cortiço, desemprego e vícios de pouca utilidade. Eu havia até parado de escrever por um tempo. E numa dessas empreitadas que a vida me deu, peguei um bico em um shopping pra levanta um qualquer. Foi assim que conheci Miguel. Ele era o ilustre papai noel do local e eu seu fiel gnomo ajudante. Sim, a situação era ridícula. Eu vestido de verde com um chapéu cônico vermelho ao lado de Miguel vestido de bom velhinho. A fila de crianças parecia infinita. Uma a uma elas sentavam no colo de Miguel e pediam seus presentes. No fim das contas, era bonito de ser ver que todas aquelas crianças ainda acreditavam num mundo fantástico. Sinto que as vezes me falta isso. Me falta acreditar numa fábula qualquer, um mundo melhor talvez. A pureza das mesmas me teletransportava de volta à minha infância, quando escrevia minhas primeiras histórias em um caderninho para as aulas de redação e literatura. Com certeza a vida soava mais doce, feito a queda de um floco de neve flutuando no ar. Nunca vi a neve. O mais perto que cheguei disso foi descongelando minha geladeira velha. Há cada 2 horas de trabalho, nos davam 15 minutos pra respirar e ir ao banheiro. Eu aproveitava esse tempo e ia fumar atrás do shopping. Miguel geralmente não ia comigo. Ele sempre cruzava o saguão, fazia um gesto para uma moça que trabalhava numa loja de jóias e os dois seguiam para o depósito. Se fodiam ou se jogavam canastra, nunca me interessou. Miguel definitivamente não me era interessante. Mas naquele dia, véspera de natal, ele foi até onde eu fumava e me pediu um cigarro. Acendeu e falou: – Cara… você já pensou em sumir? – Pô, Miguel! Eu penso nisso o tempo todo. – Então, tô pensando em sumir mesmo. – Do que tu tá falando? Tu sabe que não adianta a gente correr, os problemas sempre nos perseguem. Besteira. Eu não aguento mais a minha vida. Nem ao menos amo minha mulher. – É. Notei que tu sempre sai com a moça ali das jóias. – Verdade. Estamos apaixonados. – Por que tu não te separa e foda-se? – Clara me mataria. – Bom, já se passaram 20 minutos. Vamos pro trenó senão a mijada vai ser grande. – É mesmo. Mas vou resolver isso agora! Voltamos ao trabalho. Já havia uma fila com 15 crianças. Eu fedia a cigarro e tentava ignorar o papo que tivemos. Lá pela quarta criança, notei que Miguel suava muito. Foi ficando cada vez mais vermelho, os olhos se apertaram, um gemido abafado e ficou inerte. Morto. Foi aquela correria. Crianças chorando, senhorinhas gritando, gente rezando já, um inferno. Logo a ambulância chegou e levou o presunto vestido de papai noel. É, o natal estava comprometido. Que maneira idiota de se morrer. O shopping fechou cedo aquele dia. Um silêncio mórbido percorria pelo eco dos corredores. Troquei de roupas, coloquei um cigarro na orelha e parti dali. No dia seguinte ocorria o velório de Migue, em sua antiga residencia. Fui até lá e encontrei a viúva aos berros. – CADÊ MEU MARIDO??? – os gritos dela soavam pela rua inteira. – COMO ASSIM ROUBARAM O CORPO? – Minha senhora – falava o funcionário da funerária – Eu lhe peço milhões de desculpas, já acionamos a polícia e tudo mais. Realmente não sabemos como alguém rouba um corpo. – Não poderei enterrar meu marido, seus incompetentes. Ela tinha razão: roubar um corpo é algo quase que impossível. E quem havia de roubar o corpo de um papai noel de shopping? Consolei a viúva o máximo que pude. Ela estava desolada, pobre coitada. E como minha família cagava pra minha presença, fiz a gentileza de passar o natal com Clara. Foi estranho. Quase que como um filme mudo. Mas fiz minha parte e ela agradeceu. O tempo passou, a vida foi melhorando, porém Clara jamais esquecia da morte de seu marido e teve seu corpo levado. Esse peso a consumia dia após dia. Beirava a loucura. Um ano se passou, outro natal chegou. Eu estava trabalhando no jornal da cidade, tinha o aluguel em dia e dinheiro suficiente pra sustentar os vícios. Fui até o shopping comprar algumas coisas de que não preciso. Era impossível andar por aqueles corredores largos e não lembrar daquele acontecimento mórbido. Porém, as pessoas cagavam pro que havia acontecido. O consumismo sempre devora as lembranças, te forçando a ir de encontro com seu egoísmo. Lá estava o papai noel da vez. Sentado, vestido de vermelho, com uma jovem linda ao seu lado trajada de gnomo. Aquilo me trouxe todo aquele pandemônio de volta. Meu estômago embrulhou e me senti abafado. Com isso, resolvi fumar um cigarro atrás do shopping como nos velhos tempos. Acendi e pensei em Miguel. A vida dele era confusa, talvez mais complicada que a minha. Pobre coitado. – E aí? Ainda não largou o cigarro? – eu podia reconhecer aquela voz em qualquer lugar. – MIGUEL??? – Fala baixo, porra. – Eu não acredito. Só posso estar drogado. – É tudo verdade. Eu estou aqui, meu amigo. – Porra. Seu idiota do caralho. Fez uma pá de gente acreditar no teu óbito. Além disso, deixou todos acreditarem que haviam furtado teu cadáver. Tua mulher está tendo que se tratar pra poder aguentar tudo isso. Tens noção disso tudo? – Tenho. Infelizmente. Mas cara, eu tô mais feliz. Naquela vez eu tomei uma droga que simula a morte e Janaína me tirou da casa funerária. Casei com ela e agora é minha assistente. Somos uma dupla natalina. – Vai se foder, bicho. Não quero saber de nada. Vou fingir que nem te vi. – dei as costas e sai. Voltei ao centro do shopping praticamente pirado. Minha cabeça doía de tanto imaginar as possibilidades e sensações que poderia obter se eu também sumisse. Será que alguém enlouqueceria por mim? Talvez apenas dissesse: “Ele seguiu o rumo óbvio”. Pensei até mesmo em como seria morrer de verdade. Eu estava pirando também. Quando olho pra fila de crianças para falar com o papai noel, noto que uma mulher está sozinha. Não levava uma criança. Era Clara. Tinha os olhos vermelhos de choro. Corri para tirar ela de lá, inutilmente. Não deu tempo. Ela havia conseguido chegar até Miguel. Sentou em seu colo e, pelo que pude distinguir, sussurrou em seu ouvido: Aqui está meu presente. Sacou uma pistola da bolsa e enfiou uma bala na cabeça de Miguel. Ela já sabia de tudo. Pintou de vermelho o chão do shopping, enquanto todo mundo corria desorientadamente. Agarrei-a em pleno surto. – Eu quero meu presente. Papai Noel não gosta de mim. Por que papai noel me deixou? Eu sou uma menina boa, não sou? Por que papai noel me esqueceu – chorava feito criança com um papo maluco. A atual esposa do defunto, Janaína, lamentava a morte do marido. Chorava sentada enquanto algumas pessoas cobriam o corpo. Dessa vez ela tinha certeza que não poderia ressucitar seu esposo e trazê-lo de volta. A polícia chegou, junto com a ambulância e os bombeiros. A cena se repetia. Ver a pessoa morrer duas vezes, no natal e vestida de papai noel de shopping era surreal demais pra mim. Acendi um cigarro e caminhei pra casa. Não sabia o que pensar. Apenas entendia que datas comemorativas são criações humanas para exercerem uma bondade hipócrita que não exerceram o ano todo. Uma desculpa, um alívio ou uma anestesia. Sei lá. Naquele natal eu bebi o que pude até finalmente apagar. A vida seguiu. Miguel deixou duas viúvas: uma ajudante de papai Noel e a outra internada num sanatório por assassinar o bom velhinho. Clara havia surtado de vez. Andava vestida de mamãe noel, decorando seu quarto de hospício e cantando ritos natalinos o ano inteiro. Toda vez que vou visitá-la, me olha de cima abaixo e pergunta: – Quem é você? Já fez sua carta ao papai noel? E eu apenas respondo. – Sou o espírito de Natal.


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