O real está sempre a espera de te devorar. Abriu sua imensa boca desdentada, mastigou e me engoliu, degustando o sabor ácido de sua ilusória percepção. Me senti como uma droga sublingual, a qual nem eu mesmo pude experimentar. Eu era o efeito. O jeito com que fui dissolvido pelo dia, me lembrava beijos molhados da hipocrisia de uma prostituta a dizer que me amava. Levantei da cama, juntei as mãos e estalei os dedos, fazendo um som quebradiço que rompeu o silêncio de um dia sem luz. “Um dia sem sol é um dia perdido.” Ainda meio que dormindo, reparei no ventilador desligado, que rodava somente ao som brisa solitária que me fazia companhia na ressaca. Meu cachorro tornou a lamber o próprio traseiro, me lembrando por inteiro como era ser apenas um animal. Pela janela eu via o calor subir do concreto. Aço, passos, falsos, trajeto de um dissimulado debruçado em cima dos próprios sonhos. Paralelo bisonho. Me pus de pé e caminhei até a varanda, acendendo um cigarro e passei a cumprimentar as pessoas que pela rua passavam. Escasso tempo inevitável de um lapso qualquer que se confunde com o traços na minha parede. Em cada rosto, uma vida, um pensamento, um desalento em não saber o que se pensa. Apenas a propensa mania de continuar a caminhar sem olhar pros dois lados antes de atravessar a rua e a vida. A tarde se fazia instigada por uma cerveja, mas na minha mesa, só haviam apenas moedas de pequeno valor e um odor de noitada. Derrubei as cinzas do cinzeiro adormecido na beirada da mesa. Juntei seus cacos, pedaços e até mesmo partes minhas, as quais tinha escrito e nem lembrava mais. Devorei a mulher do cartaz com minhas retinas, mas o real não superaria qualquer obra prima que minha mente imaginara. A paz já havia se ido há muito. Meus punhos abdicaram de bater para poderem gritar. De bar em bar, de mesa, folha e caneta, minhas veias derramaram sangue poético em meus delírios. Os quais nem eu mesmo sei se acredito ou se fora mesmo tudo visto. Insisto em delirar, abafar e romantizar minhas palavras. Mas meu dia se desfez lentamente com seu sensual tédio. Tudo se derreteu, até meus escritos. Nem poesia, nem crônica ou capítulo de um livro inacabado. Nem mesmo meus amigos haviam me ligado. A noite veio e até meu cachorro havia ido pra cachorrada. Eu apenas continuava a olhar pra TV desligada, fumando os últimos cigarros esperando que a morte se sentasse ao meu lado e pusesse em cheque minha realidade. Mas ao invés disso, um blues rolou pela minha vitrola. Parecia até uma paródia dos filmes do James Dean. Rente a mim, sentou-se um crioulo, serviu um copo de gim sem gelo e divagou sobre meus apelos:
– É, meu amigo! A solidão está presente até mesmo quando se acompanha do desconhecido. Sento contigo aqui, e nem ao menos perguntasse meu nome, de onde venho, pra onde sigo. O que te faz tão sorrateiro e indiferente às demais realidades?
– Escuta aqui, eu nem ao menos sei que habito o mesmo recinto que tu. Se és um urubu vindo dos céus do inferno, ou se és o milagre eterno, não me interessa. A expectativa precede à queda. E pra falar a verdade, não tenho mais idade para contos da carochinha. Afinal, que diabos tinha de vir fazer no meu sofá?
Com um sorriso nos lábios, ele me respondeu:
– Proferindo o substantivo correto a mim: Diabo. Sou tão escravo quanto você. Esse papo de sete infernos, rei do submundo, pai de todas as coisas ruins me cansa. Eu não queria nem ser Deus. Só queria ser tão mundano quanto os humanos, que se corrompem, se ajoelham, riem, vivem apenas uma vida por vez e não tem que aguentar todo aquele blá blá blá de: “Vá de reto, Satanás!” Sabe, às vezes, o demônio também só quer paz.
– Olha cara, eu te entendo. Muita gente já me chamou de demônio. E com certeza eu já quis ser você. Trocar de peles, seduzir pessoas, fazer magia negra. Essas coisas que a gente vê nos filmes. Mas ser Deus eu também nunca quis. Nisso temos que concordar. Viver com esse falso amor de devoção, enquanto cristãos vendem a alma pro pastor, não vale a pena. Ainda falam de ti, que fazia pactos pra beneficiar as pessoas, mas no fim levava suas almas. Oras, pelo menos por um tempo elas tinham alegria. Gozavam, gastavam, enchiam a cara, tinham prazer em respirar. Quanto ao resto, vive de joelhos e não ganham nem um band-aid pra tapar as feridas. Meu amigo, aqui você encontrou um parceiro pra desabafos e bebidas. Então me diga você, sendo o “Coisa Ruim”, já amou?
– Olha, parceiro. Primeiro, muito obrigado por me escutar como um igual. É difícil num mundo tão dogmático, o diabo ser escutado como tal. Pelo que dizem, eu como criancinhas e enfio espeto pelos rabos das pessoas. Mas não, elas mesmos guardam seu próprio inferno. Eu apenas administro um hotel pro seu sofrimento. Elas são o inferno. Ninguém pode fazer tão mal a uma pessoa quanto ela mesma. Em volta da mesa lá do limbo, só me sento pra escutar reclamações de superlotação e os caralho. Claro, não chega a ser um sistema prisional brasileiro, mas aquilo lá anda bem cheio. Mas o que invejo, é exatamente essa capacidade que o ser humano tem de guardar em si o inferno e o céu. Os dois separados pelo mesmo véu, que eu não consigo transpassar. Segundo, fazendo uma conexão com esse véu que acabei de citar, o que me impede de ser humano é não ter a capacidade de amar. Eu não sou ruim, me fizeram odiar.
As palavras do demônio me romperam o pensamento. Dei um gole no meu uísque e tornei acender outro cigarro, enquanto falava.
– É, como todo mundo que cresce em um meio hostil. O vil ódio por simplesmente não pertencer aos padrões celestiais. Os desiguais, os anormais, as anomalias sociais por não rezarem direito a cartilha. Te entendo, cara. Eu também sou considerado por muitos um Belzebu completo. Mas o maior dom que me deram, foram os vícios e a capacidade cagar para que os outros falam sobre condutas e essas besteiras. A vida é perfeita por ser totalmente imperfeita, na qual temos medo de uma morte lenta, mas rapidamente queremos nascer de novo. Eita povo ruim!
– Você tem razão, amigo. E olha que pro demônio padecer de sua soberba e vir a concordar com a raça que ele mais odeia por ser imperfeita, é coisa rara.
– Sem problemas. Aqui nesta casa, ao contrário de uma igreja, se aceita toda e qualquer etnia ou encarnação. Quem seria eu pra julgar meus nobres irmãos de bebedeira, não é mesmo? Foda-se. Sente aí, beba, coma, fume, cague no meu banheiro, faça o que bem entender, porque posso não entender de amor, mas entendo de prazer. Se quiser levar minha alma? Ok, não estou muito afim de subir aos céus. Escadas me cansam. Tendo uma companhia pra filosofar sobre anjos e demônios já está bem pra mim.
O demônio riu, tornou encher seu copo e até mesmo enrolou um baseado.
– Era exatamente isso que nunca experimentei, cara. A sabedoria humana de aceitar seus passos e abrigar até mesmo este Diabo no seu sofá. Muita gente tenta ser anjo, outros preferem o demônio, mas você não. Você preferiu ser humano. Eu lhe invejo.
Rindo também, olhei para a cara do Diabo e disse:
– Fica frio, querido. Todo mundo só precisa de um trago e um amigo. O resto é puramente supérfluo. O ser humano é supérfluo, e é exatamente isso que me faz feliz. Não me concretizar em nada, e ao mesmo tempo me apegar no que tenho. Ser humano é somente ser e não ter que cumprir contrato. Agora paremos com esse papo chato, e vamos falar do que interessa: Mulheres, bebidas, noitadas e aventuras sexuais.
Desatamos a rir e engatamos madrugada a dentro ouvindo B.B. King e secando garrafas. A vida, a morte, nada interessava. Apenas a companhia de uma conversa desconexamente casual. O sol já estava quase nascendo quando o diabo levantou-se, despediu-se e caminhou até minha porta. Fui até o portão para ver algum truque de mágica, tipo ele sumir ou virar um enxofre, teletransporte. Mas nada. Não dobrou a esquina, não atravessou a rua, não andou mais que 20 passos. Fez um curto caminho. O diabo, nunca esteve longe, ele era apenas meu vizinho.
Yuri Cidade
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