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Foto do escritorYuri Cidade

O médico é o louco

Em tempos estranhos, quando consegui um emprego na capital e aluguei um apê em um bairrinho não tão agitado. O local não era lá grandes coisas, tampouco a minha vontade de mantê-lo organizado. Papéis, latas, garrafas, bitucas, pontas, putas, minha lucidez, tudo se confundia naquele chão. O bloco de apartamentos era como se fosse um grande tabuleiro de xadrez, o qual haviam somente peões suicidando-se desorientadamente ao tentar achar o seu lugar.

Se me lembro bem, há uns 5 anos atrás, passamos por uma situação um tanto peculiar, pra não dizer manicomial. Morava lá fazia uns meses, e acabei me amigando de dois camaradas que habitavam o mesmo bloco. Ricardo e Luis. Bebíamos juntos pelas esquinas, ficávamos trocando ideias malucas sobre existência, pra falar a verdade, ficamos até bem íntimos, já que nenhum de nós possuía parentesco pela região. Entretanto, em uma quinta-feira, na qual todos estávamos de folga tomando uma na sacada de Ricardo, no terceiro andar, o mesmo pergunta:

-Ei, Luís! O louco voltou essa semana? – indagou Ricardo, abrindo mais uma garrafa.

-Não vi ele essa semana ainda. Mas pode ser que apareça. Temos que ficar de olho, lembra do que o Doutor falou? – respondeu e rebateu Luis.

– Sim, Sim, por isso a pergunta. Mas talvez ele tenha melhorado….

Eu, sem entender porra nenhuma do que eles falavam, perguntei:

– Mas de que diabos vocês estão falando?

– Então, tem um louco que vem aqui de vez em quando. Ele acha que mora aqui. Paga até aluguel pro Seu Miguel. – Explicou Ricardo

– Puta que pariu! E vocês dois estão de babá aleatória de um louco? Por que ninguém avisa a família dele, vai na polícia, chama a emergência, algo significativo?

– Não temos coragem. Ninguém aqui no prédio consegue ligar pra família e dar a notícia. E também, temos pena dele, tem uma carreira a zelar. – respondeu novamente Luis.

– Essa eu quero ver! Me avisem quando esse tal maluco aparecer. – resmunguei desconfiado.

Passaram-se uns 3 ou 4 dias, Ricardo me manda uma mensagem no celular: “ELE VOLTOU!” Subi os andares como se corresse uma maratona, porém com um pulmão a menos. Suando, cheguei na porta de Ricardo, e lá estava Luís trocando ideia com um cara alto, magro, com os cabelos bem penteados e de certa idade já.

– Ele é o maluco! – Ricardo apontou discretamente pro companheiro de conversa de Luís. – Chega aí! Vou te apresentar. – e me arrastou até o lado do suposto maluco.

Quando percebeu minha presença, olhou no fundo dos meus olhos como se me sugasse um pedaço de alma e falou:

– Muito prazer, escritor. Meu nome é Bernardo.

Eu gelei. Além louco, era vidente agora.

– Prazer! Mas como que diabos tu sabe minha “profissão”?

– A inquietude com que tu olhas pra tudo ao mesmo tempo, as mãos sempre mexendo algum dedo e, principalmente, como observas a poesia ao teu redor.

Emudeci e não consegui responder absolutamente nada. Aquele maluco me parecia alguém que vai além da normalidade. Além da sanidade. Ele ultrapassava o limite da realidade e te explicava qualquer coisa sobre qualquer coisa. Ele era sóbrio até demais, pois conseguia acessar memórias de tempos que ele supostamente viveu na faculdade de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E muita das coisas faziam um sentido absurdo, porém algo nele entregava seu estado mental diferenciado. Ele tinha tiques com as mãos, piscava rapidamente, e de vez em quando soltava uma história que não fazia parte da realidade dele.

Ricardo me contou que, Bernardo não era o nome do nosso camarada especial. O nome dele era Dr. Gilberto Macedo, psiquiatra. Era exatamente isso, o maluco era médico.

– Sério, como vocês deixam um médico diagnosticar e tratar um bando de pacientes com problemas psiquiátricos, sendo que o doutor é tão problemático quanto eles? Temos que informar alguém disso! Alguém responsável. – falei indignado com tal situação absurda.

– Não, cara! Não podemos! Ele está em tratamento. – falou Luis nervosamente

– Tratamento? Tem um médico sabendo disso?

– Sim, mas de uma maneira diferente… – Luis começou a torcer as mãos – O Dr. Gilberto trata do Bernardo.

– Cês tão me zoando? Não é possível!

– É verdade! A gente ligou pro Dr Gilberto pra vir aqui analisar a situação de um morador que estava ficando louco. Abrimos o apartamento onde ele fica quando estava em modo Bernardo. Tentamos jogar algumas falas e histórias do Bernardo, pra ver se ele pegava no ar. Mas ele começou analisar canto a canto do cômodo, e achou umas coisas estranhas pelo apartamento. Rabiscos sem sentido, uma chaleira no banheiro, cálculos numa parede do fundo, essas coisas. Então pediu para ver se tinha como falar com esse morador. Nervosamente, a gente disse que o Ricardo era o louco. Então Ricardo se passa por Bernardo quando o Dr Gilberto vem consultar. Ele imita direitinho. Todos os trejeitos e falas do Bernardo, pra poder passar a situação certa pro Doutor receitar os remédios corretamente.

– Isso é doentio, Luis! Porra, como vocês dormem fazendo isso?

– Acredita na gente, cara. Não é por mal. Estamos só tentando ajudar um amigo. Por favor, não fala nada. Deixa que a gente resolve essa. Porque agora estamos até o pescoço nisso. Iriámos pegar cadeia se o pessoal descobrisse. Por favor! Não fode a gente. – implorou Luis.

– Luis, tudo bem. Isso não problema meu. Mas a gente vai ter que contar pra ele. Vamos tentar pegar o Dr. Gilberto em um dia sóbrio, e falar. Não dá mais. Mas deixo vocês prepararem o terreno antes.

– Ok! Só me dá mais um tempo.

A semana se discorreu com Bernardo anunciando que seus pais viriam no sábado e ele ia cozinhar o incrível frango xadrez que ele aprendera com um colega chinês, quando fez um intercâmbio pra Colômbia. Eu já não conseguia mais ver aquilo sem que uma faca atravessasse meu cérebro, ao lembrar do Dr. Gilberto analisando a loucura de si mesmo em um fantoche humano que imitava sua dupla personalidade.

Dias após, Bernardo perguntava se havíamos visto os pais dele saírem. Dizia que tinham passado o final de semana todo com ele, e que comprariam um sítio para passar as férias.

A situação começou afetar todos nós. Eu já nem dormia direito. Me pegava pensando em como seria se fosse eu que estivesse em surto e começasse a viver uma nova vida, uma uma realidade com acesso à memórias que não podiam ser provadas, mas eram de uma lucidez absurda. O Doutor, quando estava tomado por Bernardo, citava nomes compostos, datas, lugares, com absoluta precisão. Sem hesitar. Mas aquilo me doía na alma. Eu tinha que contar para o Dr. Gilberto que ele estava com um distúrbio, antes que isso se tornasse algo irreversível.

Na próxima vinda do Dr Gilberto, enquanto ele analisava Ricardo como se fosse o louco, eu deixei-lhe um bilhete com meu número de andar e apartamento, para que ele fosse até lá, pois eu tinha algo importante a lhe dizer.

Mais ou menos após uma hora de consulta teatral, Dr. Gilberto bateu a minha porta. Eu fumava nervosamente, pois estava prestes a acabar com a farsa e teria que assumir as consequências. Dei um gole no uísque pra encarar o maluco e abri a porta.

-Boa tarde! Então, vamos direto ao assunto, o que o senhor tem de tão importante para me contar dessa situação? – entrou o Doutor falando rapidamente – tenho outro paciente as 16:00 horas.

-Senta aí, Doutor. – falei pra ele apontando pra poltrona perto da TV.

Ele sentou-se, puxou um caderninho e uma caneta, e me olhou atento para tomar nota. Eu sentei, acendi um cigarro e comecei:

– Doutor, o que eu vou lhe falar é difícil. Mas eu não posso mais compactuar com todo esse teatro. O Ricardo não louco. Ele finge ser louco para que o senhor trate de um outro louco no lugar. Sim, estou parecendo mais maluco ainda de tentar te explicar o contexto dessa zona. Mas o senhor precisa acreditar em mim. E precisa, ainda mais, procurar ajuda, Doutor. O senhor é quem está louco. O senhor é quem vem aqui em dias aleatórios, se diz ser esse tal Bernardo, que estudou em várias faculdades, principalmente história, conta seus feitos, seus amigos que nunca vimos, até mesmo seus pais que nunca vimos. As afirmações são tão impressionantes que beiram a uma pureza nos fatos e a gente se pega realmente acreditando nas histórias que o senhor, em surto, conta. Porém, quando o senhor sai e volta a normalidade, é como se o senhor esquecesse tudo. Não sei como o senhor consegue acessar memórias diferentes sem misturá-las. Mas doutor, o senhor precisa procurar ajuda. Se o senhor quiser que eu ligue ou informe alguém, só me avisar. – terminei de falar com um embrulho no estômago.

Ele me olhou seriamente, parecia meio incrédulo, mas conformado ao mesmo tempo. Vi uma lágrima cair do seu rosto. Ele sorriu levemente. Guardou seu caderninho. Enfiou a caneta no bolso. Veio até perto de mim, me abraçou e disse:

-Muito Obrigado! – virou às costas, pegou sua maleta e saiu.

Eu não consegui me mexer de onde estava. Passei dias em casa tentando absorver tudo o que se passou, até tomar coragem, e ter como dever, conferir o que tinha acontecido após aquela conversa com Dr. Gilberto. Ele nunca mais tinha dado às caras, nem como médico e nem como louco, tampouco atendeu minhas ligações. Quanto a Luis e Ricardo, esse tiveram mais sorte do que juízo. Escaparam ilesos, principalmente do tráfico de remédios controlados que eles vinham fazendo com os receituários que roubavam do doutor, quando ele vinha consultar o suposto paciente. Assim, fui até o local onde ficava o antigo consultório psiquiátrico do Dr. Gilberto. O local encontrava-se fechado. A placa com seu nome ainda permanecia, mas dessa vez fazia companhia com uma de “Aluga-se”. Perguntei aos moradores e nos comércios vizinhos, porém todos disseram que não sabiam o que havia acontecido. Simplesmente um dia ele foi até ali, ficou umas 2 horas, saiu com uma caixa e nunca mais abriu o lugar.

Voltei pra casa, ainda perturbado com aquilo tudo, mas de certa forma conformado com o desfecho “triste” que a história tinha tomado, afinal todos estamos sujeitos à loucura. E muitas vezes a humanidade se parece com a situação de Dr. Gilberto/Bernardo, comete insanidades, é absorvida por uma realidade que não é a sua, e quando volta a si, iludidamente, se automedica sem saber da própria loucura.

Dois dias depois, escutei barulhos nas escadas. Logo após silenciar, eu sai no corredor e resolvi subir até o apartamento onde nosso amigo maluco residia. A porta estava entreaberta, mas parecia que tudo tinha sido levado. Entrei e vi que havia sido feita uma mudança. Levaram até as lâmpadas da habitação. Rodei pelo local, pensei, analisei, lembrei das conversas que o doutor contava quando estava em seu estado mental diferenciado. Até lembro do brilho nos olhos quando ele se vangloriava de suas aventuras. Ele era louco, mas eu tinha inveja de sua insanidade. Sentei-me no chão, de frente pra sacada, acendi um cigarro, e quando traguei, reparei que havia uma folha de papel cartão no chão. Puxei a mesma, a qual não se tratava de um mero papel. Podia-se ler em letras de forma: “O reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no uso de suas atribuições e tendo em vista a conclusão do curso de História, em 18/08/1986, confere o título de bacharel e licenciado a Bernardo Campos…”

Yuri Cidade

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