Minha máquina batia harmonicamente com o tic-tac do meu relógio de parede. Enfim, a odisseia do meu presente chegou ao final de mais uma fase. Não era cedo, muito menos tarde. Eu já podia escutar seus passos pelo corredor. As rodinhas fazendo chiado e cliques de metal. Sentia o perfume de éter no ar. Era chegada do meu grande dia.
Terminei o que estava escrevendo, arrumei minha roupa, a qual usei durante exatos 7 anos, ou 7 vidas, pois a gente acaba percebendo que o tempo nada mais é do que uma vida por cada sensação.
-Paciente 127! Favor me acompanhar. Sem gracinhas dessa vez. – me dizia um enfermeiro apontando pra maca, onde eu devia me deitar.
Não o respondi, apenas deitei e fui amarrado novamente. É foda quando as pessoas tomam pra si os pensamentos alheios, os qualificando como sanidade e loucura. Eu era assim. Ok, eu não havia sido a perfeição de ser humano. Eu tive vícios, experiências e instabilidades. E quando tudo se fodeu, minha família resolveu simplesmente me largar aqui. Daí pra frente foram camisas de força, injeções de porcarias que me dopavam, maus-tratos, violência, etc.
O mais característico de um sanatório é que, se você não tem uma patologia psiquiátrica, e vem por cair de paraquedas aqui, você irá enlouquecer. A gente sempre se acha diferente dos demais integrantes de uma sociedade regular. Que somos fora da regra, mas acredite: você é um padrão de merda. Tentamos ser diferentes porque somos iguais a todos os outros. A cópia de uma cópia de outra cópia que copiará a originalidade ilusória de mais outra cópia. Somos como se fosse uma grande máquinas de fotocópias, imprimindo freneticamente folhas, as quais acham que por suas palavras serem diferentes, não são cópias. Iludidos os tais. Continuam todos sendo apenas cópias. E foi com esse tipo de diálogo que eu vim parar aqui.
Atravessaram os corredores comigo amarrado na porra da maca, enquanto que os demais malucos me olhavam com pesar: coitado desse aí. Eu já sabia para onde ia. Fui forçado a vir naquela sala todo maldito dia que estive aqui. Filhos de uma puta! Eles haviam conseguido.
Adentramos pela mesma porta dupla, daquelas que rebate quando você abre. A grande placa de silêncio, o extintor vermelho pendurado na parede à esquerda, os 16 pisos rachados na última fileira, e a maldita porta negra. Toc, Toc…
-Podem entrar… – a voz do meu carrasco mental: Doutor Geraldo F. Bäumler.- Desamarrem-no. Hoje é o grande dia dele. Como você está hoje, grande poeta?
-Estou bem, Doutor. Obrigado por perguntar. – eu odiava ter que responder isso.
-Vejo que está forte, saudável, e até mais gordinho desde o dia que entrou aqui… Eu sempre fui fá seu sabia? – dizia enquanto andava ao meu redor – Sempre com criações novas, visões além do próprio escopo, porém talvez isso tenha lhe subido à cabeça, não é mesmo?
-Sim, doutor. Foram as drogas e minha mania de grande que tiraram minha sanidade… Reconheço.
-Eu realmente estou impressionado. Achei que nunca reconheceria seus erros, muito menos que sairia daqui. Pois você sabe o que aprontou aqui, não é? – O cachorro falava das vezes que tentei fugir, que fui pego transando com uma enfermeira, que iludi os guardas com minha lábia, e até mesmo de ter fingido estar morto para ver se me esqueciam. Mas ele nunca me perdoou por duvidar de seu diagnóstico.
Por várias vezes eu sentei na cadeira à sua frente à conversar. Porém, ele nunca estava satisfeito com minhas respostas, pois esperava sempre algo que fosse considerado são por ele mesmo. Ou seja, ele não era mais do que um ser humano normal, com poder demais sobre outros seres, que julgava o que era certo e errado. Quando qualquer um de nós contraria alguém, na maioria das vezes, a reação instantânea é dizer: Você está louco. E bom, a grosso modo, era isso que ele fazia comigo.
As coisas foram piorando com o passar do tempo. Cada vez que o Dr. Bäumler me considerava louco, ele inventava um novo método pra tentar me curar. Isso passou de conversas com espirituais, até choques elétricos e isolamento. Dentro de mim só crescia o ódio, até entender que pra sair dessa porra, a minha criatividade e inteligência artística não serviam de nada. Eu tinha que ser “inteligente” de verdade. Passei a escrever monólogos visionários sobre em como você deve se adaptar ao mundo, conhecer a si mesmo, conselhismo e as porras todas que vocês engolem todos os dias sem perceber. Mas ainda não era o bastante, pois quando ele me pedia para sintetizar algo que eu estava vendo, como um simples vaso na mesa por exemplo, eu dava muitos detalhes, visões sobre aquilo e até mesmo comparava a vida com o que ele me pedia pra identificar. Isso o deixava puto, pois, logicamente, eu estava errado para ele. Eu tinha que enxergar o que ele enxerga.
Por mais que eu tentasse enxergar o que o maldito queria, eu não conseguia preencher. Então ele me trouxe, durante os últimas 3 anos, para uma sala acoplada a a sala dele. Realmente aquela sala me dava medo. Ela não devia ter mais do que 3×3. Toda branca. Era como mergulhar num litro de leite. E lá, todo dia, ele me fazia a mesma pergunta: O que você vê?
Durante 2 anos e 8 meses eu resisti. Respondi o que me vinha à cabeça. As sensações, o fervor, a irritação, o delírio talvez, o que realmente eu enxergava. E ele não estava satisfeito.
Apanhei, me eletrocutaram novamente, me jogaram na água fria, cortaram as visitas, e nos últimos dois meses eu consegui finalmente responder o que ele queria.
-Então, meu amigo. O que você vê, hoje? – me perguntou enquanto eu olhava em volta da sala branca.
-Quatro paredes brancas, doutor.
-Você tem certeza disso?
-Certamente são quatro paredes brancas.
-Finalmente você aderiu a realidade. Está pronto para voltar ao convívio de sua família, amigos, mas longe das porcarias, entendeu? – Falava isso enquanto escrevia minha alta no prontuário. – Visitarei você em breve para checar se está tudo certo.
-Muito obrigado, doutor.
Pude finalmente trocar aquele maldito uniforme que me deram e colocar minha camisa. Meus pais me esperavam na porta do manicômio. Abracei-os, chorei, pedi perdão e toda aquela baboseira que a gente faz emocionado. Senti o ar puro, a vida se refletindo diante dos meus olhos, mas algo me dava medo ao mesmo tempo. Eu estava enxergando demais ao que me parece. A lembrança do sanatório me vinha à cabeça, cada vez que eu pensava nisso.
Os dias passaram, eu voltei a escrever e decorei todo meu ateliê, o qual fora transferidos para um grande galpão ao lado da casa de meus pais, que era onde eu vivia agora. Tudo estava indo bem. Eu finalmente estava sendo considerado normal pelas pessoas. Mas me perguntava se elas também sentiam o medo que eu sentia por sentir demais. Minha sina tornou-se essa: medo de sentir.
Em um desses dias me apareceu Dr. Bäumler:
-Olá, meu artista favorito? Como se sente? – uma das visitas de rotina dele.
-Como você está?
-Estou muito bem, doutor. E o senhor?
-Bem também. – estávamos dentro do ateliê lotado de obras e trabalhos meus e de parceiros que tenho. – Interessante seu novo lugar… Me diga: O que você vê?
-Quatro paredes brancas.
Yuri Cidade
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