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Foto do escritorYuri Cidade

O roteiro de cem milhões de dólares

A bossa era nosso jazz. Cerveja gelada e uísque a noite inteira. Nem parece que na manhã seguinte eu voltaria a mediocridade de um mero datilógrafo publicitário. Sempre necessitei de certos desejos, até um tanto megalomaníacos, porém a vida não me dava brecha pra introduzir a criatividade sem filtros que pregava. A vida é uma tentação. Parabenizo a quem consegue se abster do universo mundano, pois jamais trocarei a intensidade que carrego por coisas efêmeras ou utópicas. Estou pouco me fodendo se me saboto com tantas expectativas. É o que vou levar daqui.

E assim, durante a ébria atmosfera, um colega conta-me: – Escrevi um roteiro. Acho que esse pode emplacar algo. – Porra, Miguel. Isso é muito bom cara. Quando lançar me avise. – Sim. Vou precisar de ti na minha equipe, se der tudo certo. – Que honra, grande amigo. E pra onde vai mandar? Algo pro Rio de janeiro e São Paulo? – Fecharam todas as portas pra mim lá, bicho. Procuram somente figurões e atores sóbrios para manter a ordem. Essa porra vai pra Hollywood, filho da puta. Que a Califórnia nos abrace. Foi a gente que se abraçou e começou a criar coisas antes mesmo da aprovação do roteiro. Quase viramos a noite no boteco. A companhia de 3 belas moças e a bebida barata seguraram muito tempo de ambos. Os dias se passaram. Recebo a ligação de Miguel: – Arruma as malas porque em uma hora tô aí. Vamos à Califórnia mostrar o roteiro. Os caras se manifestaram empolgados. – Caralho. Vou arrumar tudo aqui. A viagem foi longa. Aeroporto brasileiro nunca teve seus dias de glória. Mas enfim chegamos a terra do Tio Sam. Aquele lugar fervilhava. O sol castigava. Estávamos de terno e gravata suando como dois porcos. Podia sentir as gotas de suor que brotavam nas costas e prendiam a camisa na pele. – Cê tem o endereço? – Relaxa, tenho sim. Só precisamos de um táxi até o hotel. Finalmente conseguimos o táxi. E começou ali a saga. Durante o caminho percebemos que a cidade tinha entrado em pânico. Pessoas corriam, policiais e viaturas passavam em direção semelhante a nossa. Numa questão de uns 6 segundos, um carro verde para ao nosso lado e, pressentindo o que vinha, abri a porta direita traseira e me joguei sobre o asfalto quente. Depois disso, o ar zuniu. Como se eu tivesse injetado meio litro de LSD, vi coisas se retorcerem e meus sentidos apagaram-se um a um. Até hoje não sei direito se eram terroristas, mafiosos ou algum tradicional cidadão de bem. A única coisa que sei foi que não sobraram pedaços do taxista e de Miguel. Pós o baque, acordei no meio do caos ainda. O socorro não conseguia passar. Por um milagre, tive escoriações leves e alguns pontos na testa que deviam ter sido dados. Me arrastei até ter forças suficiente para levantar e correr sem destino algum. Tinha apenas uma mochila de Miguel, que sempre me pedia para carregar, pois suas costas pareciam ser feitas de vidro. Eu estava só, num país que não dominava o idioma, fodido e sentado em um banco esperando atendimento. Fiquei em choque. Não conseguia imaginar como iria contar o ocorrido à família de Miguel. Acho que devido a pancada da bomba, comecei a ter umas paranóias e precisava me distrair. A fila era imensa e eu não era prioridade. Abro a mochila e encontro: o roteiro de Miguel, 1000 dólares e a agenda de contatos da maioria dos produtores de Hollywood. O diabo só existe quando o humano se testa. O demônio não é uma entidade em si, e sim uma derivação da nossa personalidade quando impactada com oportunidades de mudança radical, mas que põe em xeque a moral. Não tinha mais país, minha irmã não me reconhece como tal e minha vida era medíocre no Brasil. Sim, eu fechei a mochila e apenas aguardei o atendimento, em silêncio. Deixei que minha cabeça arquitetasse o plano maquiavélico em paz. Dentro da mochila também havia uma muda de roupa. Logo que fui atendido, me troquei e sai de vez do local do atentado. Eu morri. Meus documentos e Dna estavam lá junto com os farelos de Miguel e o taxista. Não sabia se viveria com a consciência tranquila, mas queria tentar. Assim, fui até um hotelzinho com nome latino. Pois o espanhol eu desenrolava bem melhor que o inglês. Consegui um quartinho por uma quantia razoável e sentei-me a sós com o que tinha em mãos. Talvez era a única alternativa para um salto pro recomeço de uma vida. Isso não quer dizer que foi bom. Fiquei pensando naquilo tudo. Meu amigo estava morto, eu sumi pro mundo, tenho um roteiro promissor e alguns dólares pra me virar aqui. Era isso. Não havia saída. O que estava feito, estava feito. Peguei aquele puta calhamaço e li de cabo a rabo. Era fantástico. Realmente era maravilhoso. Um dos melhores roteiros que já li. Virei a noite assim. Na manhã seguinte, comprei um terno e gravata, me vesti para a reunião e fui até a produtora. Realmente eles aguardavam a visita de um brasileiro que prometia-lhes um roteiro. Eu era esse cara agora. Peguei uma cópia e entreguei ao gringo. Ele disse pra eu voltar no fim da tarde. E conforme o combinado, segui. Chego de volta na produtora e o homem está na porta me esperando com um contrato gigantesco pelo “meu” roteiro. Batizei-me de Miguel Urbano. Com o dinheiro que entrou, fiz documentos falsos, sonhos falsos e uma vida falsa, mas que me fazia gozar. Então, acometido pelo comodismo, fui rodando aquele filme. Tudo se encaixando perfeitamente, até que a atriz principal surta no meio do set. Esperneava e gritava exigindo que sua personagem fosse mais ativa, sendo que não havia como ser mais ativa que a atriz principal. Esse foi um dos primeiros problemas. A praga do Egito tem suas fases. Frequentava a alta sociedade do cinema. Festas, prostitutas, drogas e muito dinheiro investido em qualquer coisa que lhe desse diversão. O mundo te come pela tua fome de vomitar. Vieram os escândalos, os paparazzi e toda aquela pataquada de tv. Por um momento desejei ter sido o Miguel morto. A coisa só piorava, minha equipe tinha problemas todos os dias. Era áudio, vídeo, falta de erva, abundância de erva, atores de ressaca e etc. Certo dia enquanto fumava um na sacada do meu apartamento, recebo uma ligação, em português. – Voce está morto. – O que????? – desligou Pensei estar sofrendo ameaças de alguma merda que fiz e não lembro. Fui até a central de polícia para fazer uma queixa e pedir para que descobrissem quem fez a ligação. – Tá, e qual seu nome senhor? – Miguel Urbano – Estranho. Aqui consta que o senhor está morto. – Como é que é? – O senhor morreu ontem. E seu corpo está nesse hospital. – Tá me zoando? – Não senhor. Peço que senhor se acalme… Antes que ela terminasse a frase, catei o endereço e disparei pra fora da delegacia. A minha vida resolveu desmoronar. Passei em uma conveniência pra comprar um uísque. Quando cheguei próximo ao caixa. Uma reportagem passava na tv: O morto vivo. – Ei! Você não é cara que morreu? Tive que sair de lá. Corri pelas ruas, desviando de tudo. As pessoas apontavam para cartazes com meu rosto. Eu gritava que estava vivo. Corria cada vez mais rápido e procurava a porra do hospital. Quando finalmente cheguei, gritei: – QUE PORRA É ESSA DE QUE EU TO MORTO? Fêz-se um silêncio ensurdecedor. O médico e mais dois enfermeiros acompnharam-me ao necrotério. O frio e o cheiro de éter, entorpeciam qualquer um. O médico olhou no fundo dos meus olhos e abriu a gaveta. Estava lá. Eu estava naquela gaveta, morto e gelado. Chorei, gritei, neguei. Definhava de lágrimas. – Eu não sou, Miguel. Ele foi quem morreu. Ele. Naquele acidente. Essa porra de filme é dele. Eu roubei. Eu assumo. Mas eu não morri. As luzes se acenderam mais forte que o normal. Uma pilha de gente, com equipamentos técnicos, bem como vários contra-regras desmontavam o cenário, que eu pensava ser o hospital. Quando ergui os olhos e recuperei a visão, vi Miguel encarando-me de volta, dizendo. – E corta.

Yuri Cidade

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