SONHAR INC - EP o1 - PILOTO
- Yuri Cidade
- 3 de out.
- 33 min de leitura
CAPÍTULO 1 - O MUNDO COMUM
A chave gira devagar
A porta se abre com um clique seco.
Um homem entra. Quarenta e poucos anos. O rosto marcado não pelo peso do cansaço, mas por uma serenidade que beira ao deslumbramento. Seus cabelos começam a ceder ao cinza, combinando com a camisa social clara, que já perdeu o viço de nova. Ele não se apressa. Respira fundo, demoradamente, degustando a dádiva de estar vivo a cada microssegundo.
O ambiente do apartamento ao seu redor parece suspenso nos anos 90.
Móveis de madeira escura, pesados. O sofá vestido de estampas florais que um dia foram moda. Cortinas rendadas filtrando a luz amarelada, que entra quebrada em feixes diagonais. Sobre a estante, uma fileira de fitas cassete e um aparelho de som antigo, de metal gasto. No canto, a televisão de tubo, vinte polegadas, pulsa imagens saturadas de um anúncio.
— “É amanhã! Depois de 24 anos de espera, o Brasil pode voltar a levantar a taça! Basil x Itália é neste domingo! Rumo ao Tetra Brasil! Copa do Mundo? É na globo!”
Nada naquele espaço soa caótico. Pelo contrário, há uma ordem precisa, quase ritualística. A mesa de centro polida, o chão de taco encerado, os quadros alinhado. O ar exala perfume de limpeza, um frescor de pinho sol. Tudo parece disposto com minúcia, como se a casa tivesse esperando visita importante.
O homem fecha a porta atrás de si. Sorri sozinho.
É um sorriso curto, contido, mas carregado de satisfação.
E então, vozes.
Ao fundo, a melodia de uma mulher e uma criança cantam juntas. Não há pressa, nem afinação perfeita. É canto de dentro, desses que não se escreve, apenas acontece. Uma melodia doméstica, cheia de intimidade.
O olhar do homem percorre a sala. Fotografias espalhadas fixam a vida em instantes: a menina em aniversários, uniformes escolares, sorrisos desdentados; a mulher em retratos serenos; o próprio homem, entre eles, uma vida comum, tão simples que chega a ser sagrada.
Ele atravessa a sala em passos lentos. O som das solas contra o piso encerado se mistura ao zunido da televisão que ficou para trás. A mão toca a moldura da porta de vidro. Ele a desliza. O rangido metálico quebra a harmonia, mas logo é engolido pela claridade que invade.
A sacada se abre diante dele. O ar é mais leve. O local é amplo, abrigando Dois assentos de vime, grandes, convidativos, de frente para a rua, com almofadas desbotadas. Entre eles, uma mesinha de centro de madeira gasta segura algumas xícaras e restos de folhas de papel espalhadas, pequenas marcas de dias passados. No canto, uma churrasqueira antiga, de alvenaria.
A vista é viva e íntima. As ruas estreitas de paralelepípedo são maioria, ladeadas por casas baixas e fachadas desbotadas. No centro, a praça se abre, discreta, com bancos de madeira e árvores antigas que projetam sombras longas sobre o chão. Ao fundo, a igreja branca mantém sua torre de relógio erguida, marcando o compasso lento da tarde que se despede.
A mulher, sentada em uma das poltronas, canta com a menina das fotos, de costas para ele. Batem palmas de maneira irregular, seguindo um ritmo que é só delas. Quando a mulher ergue o rosto e percebe sua presença, sorri. Um sorriso verdadeiro.
O homem também sorri — mas apenas por um instante.
Os olhos dele se estreitam. Há algo além.
Ao lado de sua filha, uma outra criança também está sentada no tapete.
Seu corpo magro, veste apenas uma espécie de Tapa-sexo. A pele tem um tom estranho, claro demais, quase frio. O rosto não entrega idade nem gênero. É como se tivesse sido moldado sem pressa, sem definição. Os olhos, porém, são o que mais impressionam, pois são um violeta incomum, rarefeito, que parecem oscilar o brilho.
A criança canta junto. Move o corpo, 1', acompanha a cantiga como se fosse parte dela. Mas a mulher e a menina continuam no mesmo ritmo, alheias. Nem percebendo a presença daquela figura incomum.
O sorriso do homem se desfaz. O peito aperta. A cena doméstica, antes intacta, agora lhe incomodava profundamente. Mantendo os olhos fixos no intruso, seu corpo treme levemente, não de medo, mas de incredulidade.
— Quem é você? — pergunta, com a voz baixa, tensa. — Por que está aqui?
A criança não responde. Sorri apenas, lento, contido, como se cada movimento fosse calculado. Continua a brincar, sentado no tapete com a menina, batendo palmas e seguindo a dupla. O homem se enfurece, perdendo a compostura. Ele dá um passo à frente e segura os ombros da criança, virando-a na sua direção.
— Você não pode ficar aqui! — a voz sai gritante, urgente, como um comando.
O toque parece reagir de forma inesperada. Ele sente o corpo ferver, um calor intenso subindo do peito até o rosto. A cabeça lateja, e por um instante a sacada parece se inclinar, os móveis, as cadeiras de vime e a mesinha de centro ganham contornos estranhos, como se ele estivesse vendo tudo através de uma lente que distorce a realidade.
A criança ergue os olhos de forma lenta. O sorriso continua, mas agora há impaciência eu seu semblante. A dela voz sai firme, entediada, sem emoção aparente:
— Você estragou tudo...
A frase ecoa no homem que sente algo explodir dentro dele. Um rompante de ódio, de destruição, uma obsessão que não tem lógica. Os músculos vibram desprezo, e o pensamento pulsa violência. Sem pensar, caminha até o que parece ser um quarto. Abre a gaveta com dificuldade. Dentro, um revólver, frio e pesado. Um carregador cheio de balas. Ele sente o metal, o peso daquilo, como se tivesse segurado finalmente a extensão do próprio delírio.
Não há hesitação. Atira. Primeiro na mesinha de centro, estilhaços de vidro saltam. Depois nas cadeiras de vime, torcem e quebram. O chão treme sob o impacto. Os quadros caem, os retratos se fragmentam, espalhando imagens de uma vida que, de repente, parece não significar nada.
A mulher e a menina continuam cantando. Elas seguem, indiferentes, envoltas na melodia. Não há pânico, não há susto. Apenas a música, em looping.
Então, ele cede ao impulso mais uma vez. Dispara. Uma, duas, três vezes. O estampido se mistura à cantiga, à luz amarelada do fim de tarde. Mesmo quando as duas caem, imóveis, ele continua. Ainda dispara. Ainda sente a raiva queimando nas veias. Tudo é vermelho agora.
A criança misteriosa permanece de pé. Imóvel. Olhos arroxeados fixos nele. O sorriso é o mesmo, sem pressa, provocativo. O homem tenta atirar nela, mas as balas atravessam o ar, como se a ignorassem. Ela não se abala.
— É hora de dar adeus... - E salta. Da sacada. Para o infinito.
O homem observa, o coração batendo descompassado, uma mistura de incredulidade e terror queimando na garganta. O vazio engole a criança, mas a melodia continua, ecoando na varanda destruída. Ele recua, tropeça, vê o caos ao redor. Cada canto da local, cada móvel quebrado, cada vidro estilhaçado, cada rosto no chão, tudo o que fez, e percebe o horror do que acabou de acontecer.
Sem pensar, sem raciocinar, leva a arma à boca. O metal frio encosta. Um último sopro de consciência atravessa seu corpo. Clique. Boom.
Ele acorda com um choque elétrico que atravessa os ossos. Um estalo agudo nos ouvidos, uma luz fria nos olhos. Tem sobre a cabeça um aparelho estranho, preso aos ouvidos com uma espécie de fone, e uma tela sobre os olhos. Na lateral, gravado no aparelho, a inscrição "Linkedream".
— Que merdaaaa!! — grita.
Arranca o equipamento. Pisca algumas vezes, ajusta a visão. Está numa quitinete pequena, suja, com paredes manchadas e rachaduras que respiram umidade. Um ventilador enferrujado gira lento no teto, espalhando o odor de óleo queimado. A luz de neon da rua entra pela janela, tingindo tudo de verde e magenta. É um lugar fodido, decadente. E ele… ele está acabado. A barba cresceu, desgrenhada, o cabelo lhe falta em algumas partes, roupas amarrotadas e sujas.
— Ah, inferno… — resmunga. Repara no aparelho ainda na mão. — Por isso eles falam que não se deve usar com o carregador conectado na tomada…
Tenta reiniciar o sistema. Respira fundo e coloca o Linkdream novamente. O aparelho vibra, reconhecendo o login biológico. A tela à sua frente se acende com linhas verdes de código correndo em cascata, revelando informações básicas:
11 de Julho de 2098 — 3:45 AM — Florianópolis — 10°C
O coração dispara. Um fio de esperança atravessa sua mente, mas dura apenas um instante. Antes que consiga processar, a tela trava. Letras vermelhas piscam:
“SEUS CRÉDITOS ACABARAM. ATUALIZE SEU PLANO PARA MAIS CRÉDITOS OU AGUARDE O PERÍODO DE 30 DIAS”
— Só pode ser sacanagem! — grita, arrancando o aparelho outra vez. — Eu abasteci hoje!
Ele dá um passo vacilante e tropeça numa lata de energético amassada. No canto da kitnet, entre entulhos e restos de comida, encontra seu smartphone futurista. Tremendo, pega o aparelho e desbloqueia a tela com movimentos secos, quase automáticos.
Uma única opção cintila na interface: Contato – Serviço de Atendimento ao Cliente Sonhar Inc.. Logo é atendido e digita rapidamente a opção de suporte técnico, com os olhos colados na tela, transparecendo uma pressa voraz.
Do alto-falante sai uma voz. Não humana. Meticulosa, calma, irritantemente correta:
— Você está sendo redirecionado para o suporte técnico. Aguarde um instante. Obrigado por usar os serviços da Sonhar INC.
CAPÍTULO 2 - ARRAES
O cubículo era sufocante, mergulhado em penumbra. As únicas fontes de luz vinham das dezenas de telas piscando, cada uma mostrando códigos, imagens e gráficos em constante movimento. O ar cheirava a ozônio queimado, com o fedor metálico de cabos superaquecidos. Era um laboratório improvisado, feito de restos, sucatas e gambiarras.
No centro, um homem de cerca de sessenta anos se movia frenético entre os aparelhos. A barba por fazer, os cabelos faltantes e os olhos fundos, cercados por olheiras roxas, revelavam uma vida devorada pelo cansaço. Vestia um jaleco manchado de óleo e fluidos eletrônicos, costurado em vários pontos. Suas mãos tremiam, mas não paravam: digitavam, conectavam cabos, ajustavam chips, como se o tempo estivesse sempre contra ele.
As paredes do cubículo eram tomadas por anotações rabiscadas em folhas presas com fita, diagramas mal iluminados e plantas de projetos espalhados sem ordem. Fórmulas, esquemas digitais, mapas de engenharia biotecnomédica. Mas no meio desse caos, algo se destacava. Um painel maior que os outros exibia a reprodução quase perfeita do Linkdream. Linhas e circuitos minuciosamente copiados. Diagramas de interface neural. Pequenas notas de teste, escritas em caneta vermelha: “não estável”, “sincronização falha”, “risco permanente”.
Ele parou por um instante. Suor escorria por sua têmpora. Observou a tela principal, onde o protótipo virtual do Linkdream girava lentamente em três dimensões. Seus olhos cansados refletiam aquela imagem com obsessão, orgulho e medo.
Uma das telas, maior que as outras, funcionava como uma espécie de TV pirata, captando sinais instáveis das redes abertas (e ocultas) de Floripa e do mundo. A imagem tremia, distorcida, mas a voz do apresentador da NSC era clara o suficiente para preencher o cubículo.
— “...mais uma noite de protestos na Beira-Mar. Centenas de moradores invadiram a filial da FinancialFuture, alegando manipulação nos contratos de crédito. A polícia privada reagiu com drones de dispersão, deixando dezenas de feridos...”
Outra manchete se sobrepunha, piscando em vermelho:
— "Riot Games não é mais Riot Games. A empresa agora se chama Riot Corp e anunciou que, a partir da tecnologia do League of Legends, está criando simuladores de combate para treinamento militar e equipamentos bélicos. Segundo o comunicado, esse é o ‘próximo passo natural’ da companhia, que deixa o entretenimento para atuar também no setor de defesa e segurança."
Ele suspirou, distraído. Por um momento, esqueceu os cabos, as plantas e o suor.
TOC. TOC. TOC.
Três batidas secas na porta de metal.
— Abre, Dr. Arraes! Sou eu! — uma voz juvenil ecoou, abafada, mas firme.
Levantou com um sobressalto e, resmungando, caminhou até a porta, puxou o ferrolho e abriu a pequena portinhola quadrada, revelando apenas um olho atento. Conferiu. Depois, girou as travas e abriu a porta.
Um garoto de uns catorze anos entrou apressado. Magro, rosto manchado de poeira, cabelo raspado de um lado e comprido do outro. Carregava uma mochila pesada nas costas, uma caixa com sucatas e peças eletrônicas nos braços, e ainda uma sacola amarela gordurosa com o logotipo de um palhaço pixelado sorridente: “MacroDonalds™ – Sabor Artificial desde 15 de Abril de 1955”.
— Achei umas peças boas nos lixões das tecs, doutor. — dizia o garoto, ofegante, largando a caixa no chão. — Também trouxe comida… porque, pelo cheiro daqui e o teu estado, o senhor não come faz uma cota.
Arraes suspirou fundo, pegou a sacola engordurada da MacroLanches™, e acenou com a cabeça.
— Valeu, moleque. Tu me salva sempre. — disse, puxando um lanche murcho e ainda quente, o pão brilhando de tanto óleo artificial.
Sentaram-se em cadeiras tortas, improvisadas com ferragens. Entre mastigadas pesadas e o som das telas zumbindo, conversavam.
— E aí, como tão as coisas lá fora? — perguntou Arraes, a boca cheia, mas os olhos atentos.
O garoto soltou uma risada seca.
— Tá foda, doutor. A polícia só faz cagada, inventa crime pra matar pobre. Esses dias entraram no Refúgio das Rendeiras. Sabe, aquela comunidade que sobreviveu às cheias lá perto da Lagoa da Conceição. Derrubaram as barracas de metade da galera, só porque disseram que era “área de risco físico e digital”.
Arraes balançou a cabeça, mastigando devagar.
— E ninguém faz nada?
— O pessoal do Movimento Arte e Resistência tá se organizando. Tão preparando uma manifestação contra a Sonhar Inc. — disse o garoto, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Já já vão começar a espalhar as datas.
Os olhos de Arraes brilharam por um instante. Ele se inclinou pra frente.
— Onde essa galera anda se reunindo?
O garoto deu de ombros, abrindo um refrigerante em lata que chiou alto no cubículo.
— Sei não. Eu só fico ligado num fórum secreto de uma hacktivista. Ela se chama Sereia.exe. Vive soltando info dos grandão, vazando contratos, denunciando golpe das corporações. Foi ela que divulgou o esquema da FinancialFuture semana passada. Tá sempre puxando manifestação, trazendo data, lugar, essas paradas.
Arraes recostou-se na cadeira, mastigando devagar, pensativo. O nome ficou ressoando em sua mente: Iara.exe.
Enquanto devoravam o lanche gorduroso, a tela maior piscou, interrompendo a programação com mais uma notícia urgente.
— “Usuários relataram episódios de distorção de comportamento e alteração involuntária de humor dentro dos sonhos produzidos pela Sonhar Inc. A empresa informou que os serviços já foram restaurados e que está em busca do causador do problema, que seria um hacker responsável pela instabilidade. ”
O garoto revirou os olhos e soltou um estalo com a língua.
— O serviço mais consumido do mundo… e é o que mais dá problema.
Arraes riu de canto, limpando a boca com a manga do jaleco manchado.
— Pra vender remédio, eles têm que inventar as doenças.
Os dois riram juntos, abafados, como cúmplices que entendem a sujeira do jogo. Depois trocaram mais algumas palavras banais como o preço absurdo da energia, o dirigível da polícia que caiu, a última atualização bugada do League Of Legends. Coisas pequenas, do cotidiano, mas que davam um ar de normalidade ao cubículo cheio de sucata.
Quando terminaram o lanche, o garoto guardou a mochila, levantou-se e ajeitou a caixa de peças. Arraes abriu um painel lateral de uma das telas, encostou o dedo no visor e transferiu discretamente alguns créditos digitais.
— Tá aí, Pirulito. Pra te virar mais uns dias.
O garoto sorriu, agradeceu e seguiu até a porta metálica. Antes de sair, virou-se por um instante.
— Se cuida, doutor.
- Tu também, Pirulito. Tu também.
A porta rangeu ao fechar, deixando o Dr. Arraes novamente sozinho, cercado apenas pelo zumbido dos cabos e pelo brilho frio das telas.
Arraes abriu um arquivo antigo. Na tela, a imagem congelada: ele e uma equipe de cientistas, sorridentes, na inauguração do Sonhar. Fitou a foto por alguns segundos, respirando fundo.
— Vamos lá… mais uma vez esse dia. — murmurou para si mesmo.
Digitou alguns comandos e a foto se dissolveu em feixes de dados e foi sugada para um programa que ativou um Linkdream artesanal, montadoao lado da mesa. Ajustou os cabos, conferiu a conexão, e programou o relógio de pulso para despertar em uma hora.
Pegou a bombinha de anestésico, inalou três vezes e fechou os olhos.
Quando voltou a abrir, estava de novo naquele instante: a equipe se dispersando após o registro da foto.
Uma mulher se aproximou. Não era cientista, mas o olhar firme denunciava influência.
— O lançamento oficial será amanhã, doutor Arraes.
Ele cerrou o punhou.
— Ainda não é seguro. A calibragem das barreiras falha, os sonhos se chocam entre si. Precisamos de mais tempo.
— Os investidores não vão dar mais tempo.
Arraes repetiu as palavras junto com ela, como quem revive uma maldição já conhecida. Quando a mulher virou as costas e caminhou em direção à saída, ele ergueu o dedo do meio, cuspindo entre os dentes:
— Vai se foder.
No entanto, lançou o olhar para o relógio de pulso. Os números corriam, se atropelando, como se o próprio tempo tivesse enlouquecido dentro do Sonhar.
— Merda… hoje o tempo está andando mais depressa aqui. Não dá pra brincar.
Num gesto desesperado, puxou uma janela de comandos flutuante e, com um toque, congelou todas as atividades ao redor. Pessoas, máquinas, vozes e sons: tudo se suspendeu num silêncio artificial, como se o mundo tivesse sido posto em pausa.
Ele disparou pelo laboratório, seus sapatos ecoavam contra o piso metálico, até alcançar a sala identificada como "SONHAR - NÚCLEO". A porta reconheceu sua biometria e abriu-se. Empurrou corpos paralisados de colegas e técnicos, abrindo caminho até o computador central. As telas piscavam em códigos e ele digitava freneticamente, tentando recuperar algum controle.
Tempo era algo que realmente não estava a favor de Arraes, pois mal conseguira passar pelas primeiras barreiras, o sistema travou. Linhas de comando se apagaram em preto, substituídas por pulsos vermelhos. Luzes de emergência piscavam em todas as paredes.
Arraes sentiu o estômago revirar.
— Não, não, não…
A voz metálica dos alto-falantes quebrou o silêncio:
“INVASOR DETECTADO. AMEAÇA CONFIRMADA. EM CASO DE RESISTÊNCIA, ELIMINAÇÃO COMPLETA AUTORIZADA.”
Do ar, como espectros surgindo, três guardas se materializaram. Eram figuras brutais e, apesar de digitais, tinham uma presença real demais. Armaduras pretas, rifles luminescentes, e olhos que eram apenas feixes brancos.
Arraes correu. Deslizou entre corredores de servidores, se enfiando atrás de colunas metálicas, o coração disparado.
— Dr. Gilberto Arraes! — uma voz autoritária ecoou. — Entregue-se imediatamente. Você está cercado!
Ele conteve a respiração, prensado contra as placas frias, enquanto os passos dos guardas ressoavam cada vez mais próximos.
— Movimento detectado aqui. — disse um deles, a poucos metros, em um corredor adjacente.
O cientista cerrou os dentes. Suor escorria por sua testa. Não via nada, apenas ouvia. Primeiro, o silêncio puro por microssegundos. Depois, o estrondo. Uma cacofonia macabra.
Gritos. Explosões de dor. Sons de corpos sendo despedaçados, metal retorcido, ossos estilhaçados. O cheiro de ferro queimado e sangue digitalizado impregnou o ar. Arraes arregalou os olhos, tentando entender, enquanto fragmentos de braços, capacetes partidos, rifles e sangue voavam pelo corredor.
O que quer que fosse, destroçava os guardas como brinquedos. Deu um passo hesitante, tentando espiar, quando um novo som rasgou o ambiente. Um alarme agudo, incessante.
Seu pulso vibrou violentamente. O relógio zerou. O mundo do Sonhar colapsou como vidro quebrando.
Abriu os olhos de volta ao seu laboratório escuro, o corpo suado, o peito arfando. O Linkdream chiava, queimando os últimos resquícios da simulação.
Ele levou a mão à cabeça, ainda atordoado.
— Mas que porra foi essa?
CAPÍTULO 3 — AS FILHAS DA ILHA
O salão estreito do centro comunitário estava abarrotado. Vozes se sobrepunham em uma balbúrdia de queixas, xingamentos e pedidos desesperados. As paredes descascadas vibravam com o tumulto, derrubando partes da pintura descascada, enquanto que o calor de tantos corpos comprimidos tornava o ar pesado.
No meio da confusão, de pé sobre uma cadeira improvisada, estava Vera. Mulher preta, de pele marcada pelo sol e pelos anos de luta, com tranças longas presas em um lenço vermelho, o rosto denunciava cansaço, mas os olhos firmes sustentavam a responsabilidade. Seus quarenta e poucos anos carregavam a força de alguém que nunca teve o direito de desistir.
— Gente, calma! — a voz dela tentava atravessar o mar de vozes. — Eu já entrei em contato com a CELESC, sim. Tô cobrando religar a energia da Costeira, mas vocês sabem, a última tempestade escangalhou tudo. Eles juram que tão arrumando…
Um grito explodiu do fundo, de um homem de boné desbotado e camiseta molhada de suor:
— Já faz três dias, Vera! Tás maluca, pô? A gente vai ficar no escuro até quando?
A multidão aplaudiu a revolta, aumentando o coro de indignação.
Vera respirou fundo, tentando não perder o controle.
— Eu sei, Juarez! Eu sei que tá difícil, mas o que eu consigo fazer é abrir o centro comunitário. Os geradores ainda tão funcionando. Mais um dia, talvez dois, se a gente usar na manha. Nada de ligar tudo ao mesmo tempo. Luz demais, chuveiro demais, smartphone, não dá!
Um burburinho atravessou a sala, vozes misturadas em protestos. Uma senhora gritou que os chuveiros não davam conta, outra reclamou que as tomadas já estavam falhando, que não dava nem pra carregar o celular.
— Tu me desculpe tá, Vera! Mas esse centro é uma merda! — gritou alguém. — Liga três chuveiros e o gerador cai!
Vera fechou os olhos por um instante, massageando a testa. Quando voltou a falar, sua voz saiu embargada de frustração, mas ainda firme:
— É o que a gente tem. Aqui vocês podem tomar banho, cozinhar e carregar os celulares pra se manter informados. Não é perfeito, eu sei. Mas tô fazendo o que posso. Se tiver novidade, eu aviso.
Aos poucos, a multidão começou a se dispersar, ainda resmungando. Passos arrastados no chão gasto, crianças choravam presas aos braços das mães, e pessoas lotadas de indignação saíam em grupos para o lado de fora, em direção à escuridão do bairro sem luz.
Logo, o salão foi ficando vazio, até restar apenas Vera. O silêncio que restou foi quase mais cruel que a confusão. O centro comunitário parecia tão precário quanto as promessas que ela carregava nos ombros.
Vera apagou a luz do salão principal, restando apenas com o zumbido baixo dos geradores. Caminhou até a parte dos fundos, onde havia uma pequena cozinha.
Sentada em uma cadeira de plástico, as pernas cruzadas, uma moça. Uns vinte anos, pele preta, cabelo trançado com fios de neon azul entrelaçados, jaqueta oversized cheia de patches de bandas, coletivos e símbolos de restência. O notebook brilhava no colo, enquanto os dedos corriam rápidos pelo teclado. Nos ouvidos, headphones.
— Filha… — murmurou Vera.
Sem resposta.
— Filhaaa…
Nada. A mulher suspirou, caminhou até mais perto, e então elevou a voz:
— IARA!
A moça deu um pequeno pulo, tirando um dos fones e olhando com cara de fechada.
— Que foi, mãe?
— Tô indo pra casa. Tu vais também?
Iara, sem tirar os olhos do notebook:
— Não. Preciso terminar umas paradas e depois vou dar um rolê.
— Rolê onde? — Vera estreitou os olhos. — Quem é que vai contigo?
— Nada demais, mãe. Só sair do tédio com a galera. — respondeu com aquele tom ensaiado, o suficiente pra não levantar mais perguntas, mas sem convencer de verdade.
Vera bufou, cansada, mas preferiu não insistir.
— Tá. Mas se cuida, tá me ouvindo? Sai pela porta dos fundos. Vou trancar todo o resto. E não esquece de apagar todas as luzes.
Iara ergueu os olhos, um sorriso malicioso escapando no canto da boca.
— Tá bom, mãe, pode deixar. Ah, e olha só… — ela virou o notebook, mostrando uma tela cheia de códigos e janelas sobrepostas. — Invadi o sistema da CELESC. A ordem de serviço pra religar a Costeira tava só pra daqui três dias. Joguei ela pra amanhã de manhã. Logo logo a gente vai ter luz de volta.
— Puta que pariu, guria… — a voz oscilava entre orgulho e desespero. — Não sei se fico feliz ou se fico preocupada com essas tuas coisa.
Iara soltou uma risada curta, sem desviar da tela.
— Crime é o que eles fazem com a gente, mãe… Eu só tô virando o jogo.
Vera se inclinou, deu um beijo rápido na bochecha da filha e murmurou:
— Te amo, filha.
Sem esperar resposta, virou-se e atravessou o salão, apagando a luz atrás de si.
Iara permaneceu ali, sozinha, o brilho do notebook refletindo nos olhos atentos. A sala estava silenciosa, exceto pelo zumbido constante dos geradores e o clique rápido do teclado. Ela navegava entre fóruns secretos, perfis de hacktivistas e páginas de vazamentos digitais, sempre com seu nick ativo: SEREIA.EXE. Notícias piscavam:
“Incidente no Centro: drones de vigilância confundem estudantes com infratores e dispara rajadas de choque não letal”
“Hackers invadem sistema do MegaBanco; dados expostos sem prejuízo aos clientes”
“Hacktivistas agendam protestos e boicotes digitais contra tarifa de energia”
Ela sorriu, digitando rápido, respondendo códigos e comentários, deixando rastros quase invisíveis. A SEREIA.EXE estava em seu oceano.
Quando conferiu o relógio, percebeu que era hora de se mexer. Com movimentos precisos, recolheu os notebooks, cabos e dispositivos, guardando tudo em uma mochila grande, já gasta, cheia de adesivos e patches. Apagou a luz, certificando-se de não mais nenhuma acesa.
Por cima de seu visual colorido, vestiu um sobretudo preto de tecido pesado, o capuz cobrindo parte do rosto. Saiu pela porta dos fundos, como sua mãe falou. O vento da Costeira brincava com as pontas de seu cabelo e o capuz. Iara estava pronta para a noite, invisível.
Em casa, Vera acende algumas velas, o brilho fazia sombras pelas paredes descascadas. No canto, acende um baseado, o aroma se mistura à cera das velas, criando uma fumaça densa que se espalha lentamente pelo espaço. Um quase silêncio paira sobre tudo. Quase, porque a cidade nunca está completamente quieta, sempre há zumbidos distantes de veículos aéreos, drones e propagandas holográficas cruzando o céu.
Ela sobe até a laje improvisada, através de uma escada de madeira. Se senta em uma cadeira de praia gasta e, ali do alto, observa o céu estrelado, embora poluído, com sinais de vida e destruição ao mesmo tempo. As estrelas parecem disputar espaço com letreiros digitais e luzes flutuantes, formando constelações interrompidas.
Com o baseado na mão, fuma lentamente, sentindo a brisa leve que vem do mar. Seus olhos percorrem o horizonte e, em silêncio, a mente viaja. Pensa na comunidade, nas famílias que confiam nela, nas crianças que brincam em becos alagados e nas ruas que se tornam labirintos após a chuva. A paz, percebe, é algo quase impossível de alcançar. Sempre parece distante, como se escapasse por entre seus dedos. Mas, ainda assim, por alguns instantes, o mundo parece descansar, e Vera se permite sentir, mesmo que só por um breve instante, que isso já é suficiente.
Iara atravessa a cidade, deslizando entre becos e vielas escuras, seguindo o caminho que leva ao antigo Distrito Ratones, hoje apenas chamado de Ratoeira. O nome era apropriado: um lugar esquecido, sem lei, tomado por pessoas que haviam perdido tudo, entre viciados, mendigos e sobreviventes de uma cidade que já não se importava com eles.
Parte do trajeto ela faz em barcos clandestinos, encostando em píeres improvisados, e distantes o suficiente do radar de drones de vigilância. Outrora, caminha a pé por pontes frágeis e plataformas improvisadas, equilibrando-se entre estruturas de metal corroído e tábuas bambas.
Quando chega à Ratoeira, a paisagem é caótica. Antigos prédios se erguem meio ao abandono, torres metálicas, cúpulas semi-destruídas e antenas quebradas. Tudo está mergulhado em decadência e degradação: ruas alagadas, fios elétricos expostos piscando em cores estranhas, letreiros holográficos quebrados que projetam flashes de propaganda no meio da fumaça, pessoas de rostos cobertos por máscaras antigas, implantes falhos e roupas rasgadas;.
O antigo Observatório Caminho do Meio, está situado em uma área cercada pela natureza, originalmente era um espaço dedicado à meditação, o local foi abandonado após as águas subirem e a cidade cortar os investimentos. Agora, o observatório está em ruínas, com sua estrutura de madeira e vidro quebrada, e a cúpula de observação desmoronada.
Apesar de tudo, a natureza ali tomou conta do espaço e plantas crescem entre as rachaduras, árvores invadem as paredes e o som do vento ecoa pelas estruturas vazias. A moça se move com cuidado, mantendo-se nas sombras, esquivando-se de olhares e passos pesados.
Finalmente, alcança um prédio parcialmente desmoronado, suas paredes rachadas e janelas estilhaçadas deixando ver apenas fragmentos de escuridão interna. Ela se aproxima pelos destroços, pulando entulhos, até encontrar uma escada que desce em direção à antiga garagem do prédio ainda de pé.
Ainda na laje, Vera tem uma lata na mão e o cigarro aceso entre os dedos. O vento corta seu rosto, e ela se debruça sobre o parapeito, observando o bairro. As casas, os becos, a pouca iluminação natural refletida nas águas. Tudo parecia calmo, até que algo chama sua atenção: luzes piscam no centro comunitário.
— Porra, Iara! — resmunga, a voz carregada de frustração. — Só pedi pra apagar a luz… Que dificuldade pra fazer o que eu peço essa menina tem!
Ela dá uma tragada longa. Com passos firmes, desce da laje e segue em direção ao centro comunitário, os olhos fixos onde as luzes insistem em piscar.
Ao descer as escadas da garagem, Iara sorri. O lugar tem o cheiro de tinta, óleo queimado e eletrônicos velhos, mas também exala energia. O Coletivo Arte e Resistência ocupa o espaço de vez em quando, e as paredes estão cobertas de intervenções artísticas como stencil, pôsteres rasgados, fios de LED improvisados, frases de protesto pintadas com spray. O local é uma testemunha de quem resiste.
Cerca de cinquenta pessoas estão reunidas, espalhadas entre caixotes, bancos improvisados e o chão sujo de poeira e restos de tinta. Todas olham para a frente, onde uma mulher de trinta e poucos anos se posiciona sobre um pequeno estrado. Cabelo raspado nas laterais e comprido, pintado em tons de verde vibrantes, roupas escuras com detalhes metálicos, botas gastas, e nos olhos a determinação de quem não se curva. Suas mãos se movem o tempo todo.
— Eles nos vendem sonhos embalados em telas e chips. Nos fazem acreditar que podemos escolher, que temos controle, quando na verdade cada escolha já foi calculada, cada desejo formatado. A SONHAR INC. não nos oferece liberdade, ela nos prende dentro de nossas próprias mentes. Cada atualização, cada “melhoria” nos sonhos, não é para nós. É para eles lucrarem, para que continuemos escravizados à busca de felicidade que não existe.
O público acompanha em silêncio, absorvendo cada palavra. Alguns murmuram palavras de concordância, outros acenam com a cabeça, olhos fixos na mulher.
— Olhem ao redor! — continua, gesticulando para as paredes, os cartazes, as intervenções artísticas. — Tudo isso é resistência. Toda ação, toda palavra, todo movimento nosso é um grito contra um sistema que quer nos domar, controlar nossos corpos, nossas mentes, nossos sonhos! As Big Techs, os gigantes do capital, nos vendem conforto enquanto drenam nossa liberdade, enquanto transformam nosso mundo em campos de consumo e obediência.
Ela faz uma pausa, respirando fundo, olhando nos olhos de cada pessoa presente.
- Todas as empresas que medem, registram, catalogam e nos dão sugestões, não estão lhe dando opções de objetos e serviços que condizem com sua personalidade. Elas manipulam nossas vidas. Transformam o que é nosso em lucro. Transformam desejos humanos em algoritmos, e nós nos tornamos produtos. Temos que resistir! Agir! Criar, Lutar! Somos os filhos das ruas afogadas, dos bairros esquecidos, das comunidades que não podem pagar por um futuro que nos roubaram.
Ela aponta para Iara, como se a reconhecesse, como se a encorajasse:
— Iara, sobe aqui — diz, sorrindo com firmeza.
- Pô, Nice! Nada a ver... - Responde a moça, enquanto sobe encabulada, sentindo todos os olhares sobre si.
O estrado improvisado não é grande, mas ali ela sente uma sensação que não está acostumada. A visibilidade.
— Vamos dar os parabéns para nossa menina da profecia! A hacktivista mais talentosa daqui! Em anos de luta, não tínhamos conseguido isso. Mas nossa Sereia, conseguiu acessar uma zona morta. Um espaço que nos dá liberdade, que nos dá invisibilidade. Logo teremos também um QG digital nosso lá. E a SONHAR INC. vai começar a sentir a resistência de dentro para fora! Vamos ocupar tudo! Até a mente deles!
O grupo explode em aplausos, gritos e comemorações. Alguns pulam, outros batem palmas, todos vibrando com a conquista da garota. Iara cora, tentando sorrir, mas o barulho de uma explosão, vinda de fora, faz seu semblante mudar drasticamente. A garagem treme!
Vera entra no salão do centro comunitário, a voz ecoando pelos corredores:
— Iara! Tem alguém aí?
O lugar está silencioso, exceto pelo zumbido do gerador. A luz dos comodos estão apagadas, exceto por um local. Ela segue pelos corredores, os olhos acostumando-se à penumbra, até achar a maldita luz piscando. Vem de uma sala de descanso improvisada, com camas simples, colchões amontoados, cobertores velhos, destinados a quem perdeu a casa nas últimas tempestades.
A luz pisca de novo. Vera ergue a mão e apaga. Provavelmente é apenas a lâmpada com problema, pensa. Porém, ela escuta, baixinho, um barulho como se fosse um alarme soando: "PEIN PEIN PEIN PEIN"
Observando melhor, a mulher nota um brilho menor, avermelhado, chama sua atenção. Vem de uma das camas, discreto, quase tímido, mas constante. Ela se aproxima devagar. E lá está um garoto de uns 17 anos, encostado no colchão, com o Linkdream preso à cabeça. Vera lembra dele. É Breno. Veio morar ali há pouco mais de um ano, sem família, sem ninguém esperando por ele em lugar algum.
Vera arregala os olhos e respira fundo.
O medo se espalha pelo pequeno grupo do Coletivo Arte e Resistência. Explosões ressoam lá fora, tiros cortam o ar, e gritos de terror se misturam ao caos. Nice ergue as mãos, tentando impor ordem. “Silêncio! Precisamos entender o que está acontecendo. Alguém consegue ver lá fora?”
Iara responde sem hesitar: “Tenho um mini drone com câmera.”
Ela retira da mochila o aparelho rosa chiclete, estilizado e cheio de adesivos, e com movimentos precisos ativa o drone. Coloca o visor e envia-o voando pelos céus da Ratoeira.
Ao estabilizar o drone, o que chega aos olhos de Iara não é um combate. É uma carnificina completa.
“E aí? O que está vendo?” - pergunta Nice, com a voz tensa, quase sufocada.
Iara narra sem pensar, como se as palavras precisassem sair antes que a visão a paralisasse.
“Grupo de Extermínio do Estado. A Polícia Militech… veículos aéreos… bombas… fuzis de precisão, metralhadoras pesadas… Eles… estão… matando… matando e matando.”
O horror se espalha pelo grupo. Alguns cobrem os olhos, outros não conseguem respirar, engolindo em seco diante do que veem.
“Estão descendo por cordas agora… vários agentes… com máscaras de... merda, merda, merda… vão jogar gás venenoso nos que sobraram!”
Uma névoa verde se espalha pelo bairro, engolindo ruas, destroços e corpos. O cheiro metálico e químico invade o ar. Pelas lentes do drone, é possível ver pessoas tossindo, caindo, tentando fugir da fumaça tóxica, enquanto o esquadrão se move como uma força implacável. Iara paralisa por um segundo. O suficiente para não ver, e apenas ouvir:
— SARGENTO! UM DRONE!
— DERRUBA IMEDIATAMENTE! E ENCONTREM O FILHO DA PUTA QUE ESTÁ CONTROLANDO!
Um disparo certeiro. A conexão cai.
Vera, em pânico, cutuca o corpo do garoto. Ele se vira lentamente, como se fosse um pesadelo ganhando forma. Seu corpo está irreconhecível. Sangue e fluidos escorrem por baixo do visor, dos fones e da cabeça. Um odor ferroso e pútrido invade o ar.
— Não! BRENO! — grita Vera.
Ela arranca o Linkdream. E, instantaneamente, sente o baque.
Os olhos do garoto estão completamente derretidos até perder qualquer vestígio de córnea. As têmporas parecem ter sido fervidas, abertas em buracos redondos e simétricos. Os ouvidos carregam o mesmo destino. E quando Vera raciocína sobre o que está vendo, entende que o que escorre não é apenas sangue. É cérebro, quase todo liquefeito, misturado com fluidos corporais, escorrendo lentamente pelo rosto e pelo colchão.
Vera recua um passo, soltando o rapaz, quase que incapaz de respirar direito. Um grito estridente escapa de sua garganta, ecoando:
— Aaaaaahhhh!!!!
CAPÍTULO 4 – PARAÍSO
O escritório era pequeno, apertado, mas funcional. Mesas de metal apoiavam telas de segurança, com cabos se espalhando pelo chão como veias. Hologramas flutuavam no ar, confundindo-se com mulheres reais, que desfilavam em trajes mínimos pela boate. A fumaça densa carregava cheiro de drogas sintéticas, suor e álcool. O bar estava lotado, os clientes imersos em sons, luzes e prazer.
Ela se inclinou na cadeira, segurando um copo de cristal em forma de caveira. Bebeu um gole de uísque, pesado, observando o movimento da boate pelas telas. Seus cabelos verde escuro estavam presos num coque frouxo, os olhos caídos e atentos. No outro braço, segurava um vape cravejado de pedras brilhantes, soltando uma fumaça densa e azulada.
Ela ampliou a tela da entrada. Por fora, nada além de uma fábrica abandonada. O portão enferrujado contrastava com a vigilância constante da gangue de mulheres armadas que cercava o prédio. Qualquer tentativa de invasão seria detectada antes de chegar perto.
A porta do escritório se abriu. A secretária entrou, segurando um tablet, enquanto falava rapidamente:
— Licença, Chefa! O Coca e o bando dele chegaram pra reunião!
— Tô sabendo — respondeu, sem tirar os olhos da tela.
Na câmera, a porta da boate se abriu. Primeiro, um malandro ostentação, vestindo jaqueta de couro preta, sem camisa por baixo, detalhes que brilhavam sob a luz da rua, óculos espelhados refletindo tudo ao redor, correntes metálicas e tatuagens luminescentes. Ao lado, um homem negro, alto, terno sob medida, acessórios discretos, tecnológicos e caros. Atrás deles, a gangue avançava em silêncio, organizada, armada.
Acompanhou o grupo pela câmera até a antesala da boate. Ali, os homens foram obrigados a deixar todas as armas em um cofre antes de entrar. Atrás deles, iluminado por luzes neon roxas, podia-se ver o letreiro interno: PARAÍSO.
Ela deu mais um gole de uísque, soltou fumaça do vape e voltou os olhos para as telas. Sorriu levemente, calculando cada movimento. Tudo ali obedecia à sua vontade.
- Leva eles pra VIP. Já tô indo. - Fala para a secretária que sai em seguida
Ela se levantou, caminhou até um espelho grande com moldura enferrujada. Conferiu o visual. Com um movimento sutil, passou a mão pelo coturno que subia até metade da canela, verificando a pequena pistola escondida.
Sem pressa, atravessou a boate. Mulheres deslizavam entre os clientes, sedutoras, mas sem contato real, sem corpos à venda. Elas conduziam cada pessoa até portas de vidro fosco que protegiam salas isoladas; lá dentro, nada de camas, apenas uma cadeira confortável, no estilo daquelas de dentista, e ao lado, um Linkdream com o nome raspado. Ecos de gemidos e sussurros escapavam das portas. A boate se revelava um labirinto de desejos seguros, um espaço onde a fantasia era consumida sem ferir ninguém e onde a realidade permanecia intacta.
Subiu as escadas que levavam ao mezanino isolado do som. O espaço estava tinha luzes difusas que se refletiam nos copos com bebidas. No centro, um dispositivo chamativo emitia vapores luminosos que subiam em espirais pelo ar. De seu corpo metálico saíam várias mangueiras flexíveis, translúcidas, com bocais de cristal, pendendo sobre as poltronas e espalhando o aroma doce e sintético do fumo, enquanto cada exalação brilhava como uma pequena névoa de néon.
Coca e o homem de terno aguardavam, acomodados em poltronas largas. Coca falava animada, segurando uma das mangueiras do aparelho.
- Então o maluco tentou meter o pé de carro, mas derrapou e deu de frente na passarela do mercado. Tu devia ter visto a cara dele!
O homem de terno permanecia impassível, os olhos fixos no nada, absorvendo cada gesto e palavra apenas com um leve aceno de cabeça.
Mas Coca interrompeu a própria história assim que percebeu a presença da mulher.
— DIVA! Minha querida! — abriu um largo sorriso, largando a mangueira de cristal do narguile de lado. — Senta aí, vamo trocar uma ideia.
Ela avançou pelo mezanino com passos firmes, cumprimentou os dois homens com um aceno controlado e algumas palavras triviais, sem perder tempo em cordialidades. Logo, já foi dizendo:
— Vamos ao que interessa, Coca. Você sabe que eu não posso perder tempo. Dá teu papo.
Coca sorriu nervoso, ajeitando-se na poltrona.
— Claro, madame… deixa eu te apresentar. Esse aqui é um faixa meu, o Paulo. Mas melhor ele mesmo dizer o que é, né?
O homem de terno se endireitou, como quem estava acostumado a negócios maiores:
— Obrigado por me reeber, Diva. Como o Coca já disse, me chamo Paulo. Trabalho como freelancer para algumas grandes techs. Já estive na Sonhar INC, mas hoje prefiro liberdade de movimento. Vim procurar você porque acredito que podemos fechar uma parceria… interessante.
Ela cruzou as pernas, apoiando o copo de uísque sobre o braço da poltrona.
— Fala aí.
Paulo inclinou-se para frente, olhos fixos nos dela:
— Eu conheço a sua zona morta. Sei que a segurança e a invisibilidade que você mantém ali são… impressionantes.
Diva arqueou uma sobrancelha e soltou a fumaça do vape.
— Trabalhamos pra caralho pra isso. E pagamos caro também.
Ele não hesitou.
— Mas não são impenetráveis. É justamente por isso que estou aqui. Tenho bastante gente disposta a investir ainda mais nessa sua invisibilidade.- fez uma pausa. - Imagine usar essa zona morta não apenas para sonhos sexuais… mas para erguer um verdadeiro mercado do desejo livre. Sonhos, drogas, armas, informações. O que mais ricasso quer é fazer coisa errada, dispostos até a sustentar um fluxo subterrâneo de grana que nenhum sistema conseguiria rastrear.
Um silêncio denso pairou por um momento. Diva então riu baixo, fria.
— Não, querido. Agradeço. Na minha, só existe espaço para sonhos eróticos e o conteúdo adulto que caso alguma das mulheres que trabalham aqui queiram vender. De resto… não me interessa.
O homem deslizou o tablet sobre o colo, virou a tela para ela como quem abre uma maleta recheada de dólares. Linhas de código, logs, esquemas de atualização, tudo corria em cascata. Calendários de varredura, janelas de manutenção, jatos de bloqueio programados: a arquitetura invisível da Sonhar INC exposta em pixels.
— Tá vendo tudo isso? — disse ele, apontando. — Tenho acesso às atualizações, aos ciclos de varredura, às janelas que eles deixam abertas por descuido. Juntos, Diva, saí de um bordel de sonhos pra um império. Estaremos sempre a dez passos deles.
Ela pegou o tablet, deixou os dedos correrem sobre a tela. O rosto não mudou, os olhos, porém, calcularam números, riscos, lucro.
Houve um silêncio longo.
— Preciso pensar — disse por fim. — Tem muita coisa em jogo. Te dou uma resposta em no máximo três dias, pode ser?.
Ele sorriu, aliviado e confiante.
— Agradeço. Vou aguardar. E saiba: não é só a sua zona morta que está em pauta. Há outros lugares, outras portas.
Ela percebeu a indireta.
— Agora, com sua licença, tenho coisas a fazer. — respondeu. — Precisam de mais alguma coisa?
O homem fez uma pausa, e falou com voz mansa:
— Se não for incômodo, gostaria de usufruir dos serviços da casa, pra ja ir me ambientando.
Diva sorriu falsamente e assentiu. Ergueu a mão chamando alguém.
— Mila! — chamou. — Conduza esse cavalheiro até a cabine 03. É por conta da casa.
Paulo sorriu satisfeito.
Enquanto Mila se aproximava, Diva deslizou o dedo pelo seu smartphone, mandando uma mensagem: “Prepara também meu equipamento. Quero monitorar o sonho dessa figura aí.”
Mila, já de pé, virou-se, inclinou a cabeça para trás e piscou para Diva. Pegou o homem pelo braço com gentileza e o conduziu pelo corredor iluminado de neon, até a penumbra das cabines.
Deixou o mezanino para trás e atravessou um corredor estreito até chegar a um depósito. No fundo, uma escada íngreme levava ao subsolo.
O porão surpreendia. Nada de caixas ou poeira. Cabos grossos serpenteavam pelas paredes como veias, telas piscavam em ritmos diferentes, processadores exalavam calor e zumbido constante. Mulheres circulavam pelo espaço, algumas com roupas técnicas manchadas de graxa, outras com acessórios brilhantes, ajustando redes, soldando peças, alimentando servidores. Havia também aquelas em cabines isoladas, gravando movimentos, vozes, performances digitais que seriam moldadas em sonhos ou vendidas como conteúdo adulto. Ali, sob a boate, estava a verdadeira máquina que mantinha a Paraíso viva.
Diva cruzou o espaço com a segurança de quem pisa em território sagrado e entrou em um cubículo reservado, blindado por paredes de vidro reforçado. Seu set pessoal aguardava. Sobre uma mesa, uma arquitetura tecnológica se abria como um altar: múltiplos monitores suspensos em suportes articulados, cabos conectados e, ao centro, uma cadeira ergonômica com acabamento em couro sintético, macia e imponente. Nos dias desse futuro, pode-se dizer que é um trono. Ao lado, repousava seu LinkDream dourado, polido como joia, com uma inscrição gravada em letras fundas sobre o nome raspado: “DONA DA PORRA TODA.”
A voz de Mila ecoou pelo viva-voz, robótica e fina:
— Tudo pronto, chefa. Só conectar.
Acomodou-se, encaixou o LinkDream e respirou fundo. No instante seguinte, mergulhou.
A Paraíso digital a recebeu como um reflexo distorcido da boate. Um espelho invertido, onde cada sala existia de novo, mas alargada, espectral, feita de vidro líquido e fumaça. As mulheres flutuavam como silhuetas de código, conduzindo clientes espectrais para cabines que vibravam com gemidos e sussurros digitais. Ali, na rede da Paraíso, tudo parecia mais real do que a carne, mas intocável ao mesmo tempo. Mas era onde Diva reinava absoluta.
Seguiu para a cabine do cliente. Um gesto rápido com as mãos trouxe uma cascata de linhas verdes no ar, uma sequência de códigos que se dissolveram sobre sua pele como véu líquido. De um instante para o outro, ela desapareceu, atravessando a porta sem ser notada.
O que encontrou do outro lado parecia o prelúdio barato de um filme pornô dos anos 2000. O homem estava mergulhado até o peito em uma banheira fumegante, cercado por azulejos brancos que brilhavam demais para serem de verdade. Duas mulheres, apenas com orelhas de coelho como fantasia, massageavam seus ombros, beijavam sua pele, dando sorrisos tão perfeitos que doíam nos olhos.
Diva permaneceu parada, os braços cruzados, encarando a cena com a frieza de quem já viu de tudo. E de fato, tudo aquilo parecia normal. Até demais.
Esperou. Observou os gestos repetidos, o vapor que nunca se dissipava, o som da água caindo sempre no mesmo intervalo, como um metrônomo. A sensação veio como um estalo: aquilo era falso. Um loop barato, uma armadilha disfarçada de fetiche.
O sangue subiu em seu rosto. Ela bufou, irritada, e o corpo inteiro dela tremeu com a fúria contida.
— Ta querendo me fuder é, filho da puta?! — explodiu, e sua voz ecoou como trovão no espaço falso.
Ela se lançou pela zona morta em velocidade, o corpo flutuando como um cometa raivoso. À sua passagem, os corredores digitais tremiam, e pacotes de dados começaram a se despedaçar no ar, estilhaços luminosos voando como vidro. Códigos inteiros se corrompiam, letras derretendo e caindo em cascatas de zeros.
— APARECE, PAU NO CU! — gritou, a garganta ardendo, mais animal do que humana. — Onde você tá, seu merda?!
A boate invertida começou a trepidar ao som da sua fúria. Ela sabia: alguém tinha invadido sua rede, e estava mexendo com ela dentro da própria casa.
A zona morta se despedaçava ao redor de Diva como um castelo de cartas. Dados se rompiam em linhas brilhantes, códigos se estilhaçavam em faíscas azuis e vermelhas, enquanto fragmentos de informação caíam como chuva no vazio.
E foi então que ela o viu.
No limite. Bem na fronteira onde a zona morta tocava o caos das outras zonas, ele estava lá. De costas para ela, o corpo banhado pela massa disforme que escapava da rachadura. Seus dedos dançavam sobre linhas de código suspensas no ar, como maestro regendo uma sinfonia de destruição.
Diva rugiu, selvagem, e avançou contra ele. Mas antes que pudesse tocar seu alvo, algo a lançou para trás como uma marionete descartada. O impacto atravessou não só a simulação. Ela sentiu o choque em sua carne real, o coração disparando, músculos contraídos, a respiração falhando.
A voz de Mila explodiu nos alto-falantes internos da rede, robótica e trêmula:
— Chefa?! O que tá acontecendo? Tá tudo travando aqui em cima! Os sistemas tão superaquecendo! Você tá bem?
Diva mordeu os lábios, surpresa, com a força daquele homem ali. Ele parecia ter mais domínio do que ela mesma. Mas não recuou.
— Você não sai vivo da minha boate, seu merda!
O homem gargalhou, um som grave, cheio de desdém, que reverberou no espaço quebrado.
— Xiu! - colocando o dedo sobre os lábios. - Essa boate é um lixo. Única coisa de valor aqui é essa zona morta. O resto? É Só um bando de vagabundas.
Diva tentou avançar de novo, furiosa. Mas ele girou alguns códigos diante de si e, num segundo, o corpo dela congelou no ar. Paralisada. Incapaz de mover sequer os olhos, embora sua mente queimasse em fúria.
— Vai assistir sua queda quietinha — disse, frio, sem tirar os olhos dela.
A barreira tremeu. Rachaduras se espalharam. E então, ela se abriu de vez.
Uma massa preta, viscosa, disforme, avançou do vazio, engolindo tudo com violência. Dados, paredes, sons, tudo era sugado para dentro daquele turbilhão que lembrava um buraco negro faminto. A versão digital da boate começava ser desintegrada tijolo à tijolo. Uma cacofonia de vozes distorcidas ecoava da rachadura, em um coro de frequências que machucavam os ouvidos.
Paulo ria como louco. Mas, de repente, seu riso quebrou. O rosto dele estremeceu.
— O quê… o quê tá errado?! — murmurou, olhando os códigos escaparem do seu controle.
Da massa surgiu uma figura. Um corpo andrógino, nu exceto por um simples tapa-sexo branco. A pele pálida refletia a escuridão ao redor. O rosto era sereno, ausente.
— Quem… quem é você?! — gritou Paulo, com a voz falhando. — Não se mete comigo! Eu tenho todas as zonas mortas mapeadas! Todos os segredos delas são meus!
O ser não respondeu. Apenas o observava com olhos opacos, insondáveis. Diva, paralisada, não sentia mais ódio. Apenas medo. Um medo que atravessava até os ossos, sufocante.
A expressão do ser mudou lentamente, como se uma náusea o tomasse. Os lábios se curvaram num traço de nojo, enquanto mantinha os olhos fixos em Paulo.
— Seus sonhos… são podres.
Estendeu a mão. Paulo gritou.
Seu corpo começou a se desfazer, dado por dado, molécula digital por molécula. A pele se dissolvia em linhas quebradas, os ossos em fragmentos, a voz dele se alongava em um grito horrível e incessante. Até que restou apenas silêncio.
O ser olhou para Diva. Sem emoção.
— Você pode ir.
E ela foi lançada de volta.
A realidade a golpeou como um soco. O corpo tremia febril, o suor escorria como se tivesse corrido quilômetros. Uma dor latejante atravessava sua nuca e, antes que pudesse falar, vomitou.
Mila estava lá, desesperada, a segurando pelos ombros.
— Chefa! Chefa, me responde!
Diva, se apoiou em Mila, a respiração falhando, mas conseguiu sussurrar:
— Pra cabine dele… agora…
Elas foram cambaleando até lá.
A boate era puro caos. Telas queimadas, cabos derretidos, luzes estouradas. Bebida escorria pelo chão, clientes gritavam em pânico, alguns com choques elétricos ainda faiscando na pele. A Paraíso colapsou.
Na cabine, o corpo de Paulo ainda estava lá. Imóvel. O LinkDream completamente destruído, retorcido em ferro derretido. Mas o pior eram os olhos: reduzidos a buracos escorridos, as têmporas abertas, os ouvidos derretidos em manchas negras.
Diva ficou em silêncio. O ódio e o desespero se misturavam em sua garganta, pesando como chumbo.
Mila, trêmula, chorava de horror e sussurrou quase sem voz:
— O que a gente faz agora, Chefa?
YURI CIDADE



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