Moro aqui, escrevi apenas um livro, cuido de uma sobrado caindo aos pedaços, o qual herdei de minha vó. E dificilmente isso irá mudar. Nunca vou descobrir ao certo o que vivi. Lembro-me de tudo, mas não explico nada. Talvez pela bebida, ou loucura mesmo. Mas nem tudo é uma estreita porta para se passar. Há grandes portões na mente humana, entre tantos muros. Pois bem, eu precisava de roupas novas. As minhas estavam uns trapos. Me dirigi até o shopping, numa daquelas promoções em massa. Havia uma fila comprida pra caralho. Estava eu lá, carregando 3 pares de meia, 2 camisas, 2 camisetas e uma bermuda azul. A fila andou lentamente, até minha vez. Paguei, a moça ensacou tudo e sai de lá. Chegando em casa, ao retirar as roupas da sacola, vejo que a bermuda que comprei não era a que veio. Porra. Odeio lojas, e as odeio mais ainda quando tenho que voltar lá. Pra mim o mundo podia ter só livrarias, galerias de arte e bares. Ninguem te julga nesses lugares, pois se você já lê algo, quer dizer que não é retardado, em galerias de arte ninguém te nota e nos bares ninguém te julga e nem você se nota. Voltei à loja. – Bom dia. Eu comprei uma bermuda, mas, acho que na hora de empacotar, a moça deve ter se confundido com outro pedido e me entregou uma bermuda diferente. – Bom dia. Estranho isso. Mas vou verificar. Cê tem a nota fiscal? – Tá aqui. – Mas senhor, tá aqui acusando que o senhor comprou uma bermuda vermelha. – Bom, mas tá errado, a bermuda que comprei era azul. – Olha, meu senhor. Se quiser trocar a bermuda, é só pedir. – Tá, que seja. Só me deixa pegar uma bermuda igual a essa, só que azul. – Primeiro o senhor preenche esse protocolo aqui. Três malditas páginas de documentos. Até nome de solteira da minha mãe. – Tá aqui. – Não, o senhor tem que levar o produto e os documentos pro setor de estoque. Pode ir por ali. Juro, eu ainda tinha paciência nesse momento. A porta que ela me mandou entrar era uma espécie de grade velha, e barulho de máquinas vinha lá de dentro. Passei pela entrada com medo de pegar tétano e uma pilha de prateleiras surgiu até o teto. – Alguém aí? – Aí alguém? – onde você ta? – Tá onde você? – O abençoado, tu tá me zoando? – Abençoado é o senhor Jesus Cristo da Silva. Eu sou um eco. – Puta que me pariu. Meu amigo, eu só quero trocar essa bermuda. Pra quem eu entrego? – Porta azul, com maçaneta vermelha. Diga o código. – Que código? Ninguém mais respondeu. Andei por aquele labirinto de caixa e estantes, até achar a maldita porta colorida. Tentei entrar direto, mas estava trancada. Bati três vezes. – Bom dia. O que você quer? – Trocar essa bermuda, meu amigo. Essa maldita bermuda. Só isso. – Maldições não são nesse setor. – Ah não. Mais um. – Noves fora. Qual o código? – Que código? – Essa sala se destina a situações específicas, sendo liberada apenas com o código. – Tem certeza que isso aqui não é um sanatório? Porque nesse lugar não se contrata, se interna. – A assistente social pode lhe ajudar com as questões psiquiátricas. – Senhor, por que me abandonaste? Onde consigo esse código? – Terceira porta depois da escada. Leve os documentos e após checar seu cadastro, será impresso o código para ser autorizado a entrar aqui. Nem respondi. Só andei até à sala. Abri a porta e mais uma fila. Lentamente esperei o tempo passar. Fui atendido por uma moça linda. – Seus documentos, senhor. – Aqui – passei-os pelo balcão. – Mas onde tá a autorização de troca? Sem esse documento não posso lhe dar o código. – Não é possível. Vou ter que voltar lá? Eu faço qualquer coisa pra senhorita me dar esse código. – Qualquer coisa? – e me deu um sorriso de canto. – Vem até aqui. – me colocou pra dentro do escritório que havia atrás. Sem mentira nenhuma, aquela mulher não era desse planeta. Começou a rasgar minhas roupas, junto com as dela, esfregando-se em mim como um animal no cio. Tudo bem que eu concordo que a parte mais animal do ser humano é o sexo e a comida. Mas aquilo era demais. – Minha senhora, tá ficando louca? – Case comigo. – Que? – Sou perfeita – Que merda eu me meti? A mulher começou a se rolar no chão, lambendo os dedos, grunhindo, parecia aqueles espetáculos da igreja universal. Até que parou. Esbugalhou os olhos e falou: – 253216 E ficou repetindo isso como uma máquina com defeito. Eu saí correndo, todo fudido e rasgado, e voltei à porta do código. Informei ao guarda, o qual abriu e apagou a luz. – Quem é você? – Tá aqui meu cadastro. – Voce comprou uma bermuda vermelha. Por que está aqui? – Porque houve um erro. Eu comprei uma azul. Quero uma azul. Essa vermelha parece uma calça de palhaço. – Cê tá diminuindo a classe dos palhaços? – Nem vou responder essa. E por que diabos a luz tá apagada? – Não interessa. Por que o senhor quer uma azul? – Tem que ter uma razão? Eu apenas gosto mais de azul, oras. – Mas por que não experimentar a vermelha? – É pegadinha isso aqui né? – Não. Estou falando sério. Se o senhor continuar de gracinha, chamarei a segurança. – Meu amigo, eu tenho alergia à vermelho. – Tem atestado? – Filho de uma cadela! Eu vou tocar fogo nessa merda. – saquei o isqueiro, um cigarro e acendi ali mesmo. – É proibido fumar. – gritou acendendo a luz – É proibido enrolar o cliente, mas olha aí você. – SEGURANÇA. CODIGO 23468 6 brutamontes invadiram o local. Pularam em cima de mim e amarraram-me numa cadeira. Eu não aguentava mais. – EU FICO COM A PORRA DA BERMUDA VERMELHA. SÓ ME DEIXA SAIR DAQUI. Fui levado até uma sala cheia de sacolas, onde finalmente me desamarraram. Estava eu, na sala do gerente, incrédulo com uma mísera bermuda vermelha na mão. – O que senhor quer? Por que tá causando problema na loja? – Nada. Só me deixa ir embora. – O que senhor precisa? – Sinceramente!? Eu preciso de paz de espírito, menos drogas, mais livros e foder mais. E UMA BERMUDA AZUL. – Ok. Tá feita a troca. Colocou uma bermuda azul na minha sacola, conferi e me dirigi pra saída. Era um dia muito quente. Eu suava demais. Aquele metrô lotado, e precisava de algo pra beber. Olhei uma moça simpática e falei: – Desculpa incomodar, moça. Mas você pode me dar um gole d’água? Acabo de passar um inferno em uma loja e tô seco com o calor. Como você pode ver – apontei pras roupas rasgadas – tive um dia bem difícil hoje. – Claro – me alcançou a garrafa. Tomei, juntei a sacola do chão, agradeci à moça e saltei. Andei até em casa, tirei a roupa e fui provar a bermuda. Retiro-a da bolsa, e percebo que me deram uma bermuda incrivelmente roxa. Podre de roxa. Não era possível. No bolso da mesma ainda havia um bilhete: “Ao nosso melhor cliente.” Rasguei o bilhete, toquei fogo na bermuda e coloquei meu velho calção de futebol dos anos 90. Acendi um cigarro e rabisquei no meu caderno: Bermudas são como o passado. Não tem troca e nunca é do jeito que você queria. O Capitalismo é uma merda.
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