top of page

À DERIVA

Acordou antes do sol. Não por obrigação. O Rio chamou.

Na beirada de seus sonhos, havia um som líquido, uma memória antiga, e isso foi o suficiente para que ele abrisse os olhos.

A casa respirava devagar. O ranger do chão de tábuas, úmidas de tempo e peixe, avisava que a vida se movimentava. O café foi feito no silêncio e exalava um aroma denso. Bebeu em pequenos goles, enquanto vagueava mentalmente em sua agenda imaginária, procurando prever como o dia se desdobraria.

 

Lá fora, a névoa ainda formava manto, cobrindo as ruas irregulares de Ilhas. Caminhou até o trapiche com a tarrafa no ombro e o cansaço dobrado. O rio, parado, era um espelho de prata velha. Pescador não considera o rio um caminho, mas uma entidade viva. Às vezes, dorme. Às vezes, engole.

 

O barco o esperava, paciente feito cachorro fiel. Embarcou sem palavras, empurrou com o remo curto, e a madeira emitiu um som oco.

 

Não havia mais ninguém pescando aquele dia. Parecia que o mundo esqueceu o rio, ou era ele que tinha esquecido o mundo.

 

Lançou a tarrafa.

O movimento é ritualístico: gira o corpo, abre os braços, traça no ar o desenho de um círculo que cai como um feitiço. A rede afunda num suspiro. E então… silêncio.

 

Não demorou muito, e algo se move. 

A linha vibrou. A rede se contorceu como se tivesse capturando o tempo. Puxou. A água foi vencida, a superfície rompe. E o que emerge não tem escamas. Ou tampouco assemelhava-se a um ser aquático.

Um relógio de pulso. Antigo. De couro escurecido, ponteiros azuis, ainda marcando hora. Leva até o ouvido, da um sacudida e ouve o tic-tac contínuo sem nenhuma interferência.

Sem pensar, coloca-o no pulso, falando sozinho:

- Pelo menos não foi só perda de tempo.

Mas ele mal termina de falar sozinho, e o vento se recolhe. O rio segura o fôlego. Os pássaros prendem o canto.

Por um instante muito fino, sente que o tempo parou. Mas a sensação se dissolve rápido demais. Entretanto, achou ser só o sol na cabeça. Pressão baixa. Voltou a lançar a tarrafa, e assim seguiu até o fim do dia.

 

Naquela noite, sonhou com uma casa que não era sua. Estava em um sobrado de muros brancos, janelas altas, jardim de arbustos aparados. Os passos dentro do sonho tinham sapatos engraxados. Sua mão esquerda segurava um copo de uísque. Mas algo lhe chamava ainda mais atenção. Um retrato sobre a lareira mostrava uma mulher de vestido azul, com o olhar fixo. Não fazia ideia de quem era a mulher, mas sorriu de maneira familiar para o retrato. Depois, acendeu um charuto.

 

Acordou. o cheiro da fumaça ainda habitava a garganta e o quarto inteiro.

Sentou-se na beirada da cama e levou os dedos ao rosto. A barba estava por fazer, como quase sempre, mas o rosto, no reflexo do espelho pendurado na cozinha, parecia ligeiramente… deslocado.

Não que tivesse mudado. Mas algo ali estava fora de lugar: o nariz talvez, ou o contorno dos olhos. Parecia estar lembrando de um rosto que ele nunca teve.

 

Mesmo assim, foi pescar. A vida exigia isso. A tarrafa nas mãos dava-lhe segurança, feito um terço, mas o rio... o rio parecia diferente. Não em cor, nem em cheiro. Era o som.  O som da água já não o reconhecia.

 

Tarrafeou a primeira vez, nada.

Na segunda jogada de rede, menos ainda.

Na terceira, vazio.

Quando ajeitava a quarta, a visão de um chapéu boiando interrompeu seu movimento. Era desses antigos, de feltro escuro, aba longa, impecável como se tivesse acabado de sair de uma chapelaria.

 

Recolheu. O tecido estava seco, apesar de flutuar há algum tempo. Sentiu que o chapéu lhe cabia perfeitamente. Colocou-o na cabeça. E então as vozes...

 

Primeiro, sussurros. Depois, palavras inteiras.

Conversas sem rosto, fragmentos de frases que pareciam vir de lugares íntimos, mas que nunca habitara.

 

"Esquecesse de comprar a vela para o natal..."

"Não deixa atrasar, o advogado tá aí..."

"Pai, tu vais na minha formatura?"

 

Tropeçou em sua própria respiração. As palavras se tornaram imagens de uma rotina: salas, escritórios, jantares em família.

Corredores que nunca percorreu, filhos que nunca teve, rostos que não lhe só chamavam de pai, mas o abraçavam como se fosse. Com o coração disparado, arrancou o chapéu e o jogou de volta ao rio.

O relógio também foi retirado e arremessado na mesma direção. O rio engoliu tudo em silêncio.

 

Mesmo assim elas continuaram, cravando memórias dentro de sua mente como um anzol. Fechava os olhos, mas não adiantava, ele continuava a vê-las. Até que uma das vozes disse.

 

“No trapiche. Desenterre o que eu deixei e eu te deixo em paz.”

 

Não havia luz no céu, nem o som dos grilos. Passou em casa, pegou uma lanterna e foi. Nem se deu ao trabalho de pensar mais sobre se isso tudo era verdade, ou se já tinha perdido toda a sanidade que lhe restava. Apenas foi.

 

Atravessou os carreiros de terra batida até a margem do rio. A água parecia observá-lo. Ele ajoelhou na beirada, perto do último pilar de madeira escura. Sem ferramentas, cavou com as mãos. A terra, úmida, se agarrava aos dedos relutando em soltar o que guardava. E então sentiu.

 

Um som metálico, oco. Escavou mais. Uma caixa de ferro escurecido, com fechos quase corroídos. Abriu. Dentro, envolta em um pano grosso, repousava uma fita VHS. A caixa plástica estava trincada, mas a fita intacta.

No rótulo, escrito à mão com marcador preto, lia-se:

 

"Araranguá – 1994"

 

Nada mais. Ficou imóvel por um tempo. Apertou a fita contra o peito e caminhou de volta para casa. Colocou-a sobre a mesa da cozinha. Não tinha videocassete, óbvio. Nem conhecia um vizinho que ainda tivesse.

Sentou-se, olhos fixos no objeto como se, em algum momento, ele fosse começar a se mexer. E assim ficou, até cair no sono, ali mesmo.

 

A manhã chegou tardia. A claridade entrava pela fresta da janela em faixas diagonais, cortando a poeira do ar. Sentia que não tinha dormido nada. A fita continuava ali, imóvel, repousando sobre a tolha de plástico da mesa.

 

A inscrição no rótulo  "Araranguá – 1994" parecia mais escura agora. Era o efeito contrário do tempo, ao invés de apagar a tinta, era como estivesse engrossando as letras, tornando-as mais vivas. Sentia-a respirar. O que estaria ali? Um registro familiar? Um arquivo de alguma empresa? Um filme de horror doméstico? Ou, quem sabe, algo que ninguém sabe...

 

No entanto, aparelho VHS já virou artigo de museu, junto com a televisão de tubo e o Disco de Vinil. Era uma mídia morta, um idioma que ninguém mais falava. Foi então que pensou no irmão, Miguel. Ele morava em Porto Alegre, numa casa amontoada de quinquilharias. Sempre fora um acumulador nato, inclusive de aparelhos extintos: telefones de disco, walkmans, rádios a válvula. Tinha certeza que, entre os entulhos, haveria um videocassete sobrevivente.

 

Ligou. Do outro lado, a voz veio abafada:

 

— Alô?

— Sou eu.

— Pedrinho? Tá vivo, homem?!

— Tô indo te fazer uma visita. Tenho... um artefato perdido pra ti.

— Opa! E o Peixe? Tá trazendo peixe, né?

— Vou levar umas tainha sim.

— Ali que eu dizia! Pode chegar, a casa é tua.

— Obrigado! Vou pegar o onibus às 10.

— Te espero então, meu irmão. Vamô, Grêmio!

 

A ligação encerrou com as devidas despedidas. Arrumou sua mochila que cabia pouco mais que uma muda de roupa, a carteira e os acessórios de higiene. O essencial. Numa bolsa de mão, colocou a fita VHS, enrolada num pano de prato no fundo; uma lata de refrigerante; um maço de cigarros amassado; o isqueiro; um pacote de chips e um pastel meio murcho. E seguiu.

 

Na rodoviária, o dia parecia empacado. Óleo diesel no ar, e crianças correndo por entre bancos. Os alto-falantes anunciavam horários que ninguém mais ouvia. O guichê da empresa de onibus era o mesmo de sempre, com seus azulejos rachados, ventarola chiando, uma mulher com expressão de gol contra e um bando de gente em volta.

 

— Porto Alegre, dez da manhã, por favor.

— Documento?

— Aqui.

 

Colocou a bolsa no chão enquanto revirava os bolsos da calça. A carteira havia sumido no emaranhado de coisas dentro da mochila. Procurou por alguns segundos, achou, pagou. Pegou a passagem, agradeceu, sorriu e subiu no ônibus alheio ao resto.

 

Logo ônibus já se movia, devagar, até pegar no tranco e seguir seu destino. Na rodoviária, a bolsa repousava abandonada no chão. Por instantes, pareceu invisível.

 

Até que um homem franzino, enrolado num cobertor velho, se aproximou. Cheirava a suor de dias e calçadas que lhe serviram como cama. Vasculhou o conteúdo da sacola e abriu um sorriso torto, satisfeito como um pirata urbano ao encontrar um tesouro.

 

— “Ô chegô, é!?”, murmurou, entre dentes e uma língua inquieta.

 

Arrancou o pastel e mordeu com fome verdadeira. O refrigerante foi pro bolso interno do casaco. Quando viu a fita, fez cara feia. Aquilo não lhe mataria a fome. Lançou-a com descaso em direção à lixeira. A fita quicou na borda enferrujada, hesitou no ar por um segundo, e escorregou para o chão, repousando rente ao concreto. Não caiu dentro. Nem quis. Ali ficou. Metade na sombra, metade ao sol, como uma pergunta que se recusa a ser respondida.

 

Histórias não desaparecem. Elas apenas mudam de mãos. E seguem à espreita, aguardando quem deve escutá-las.

 

Yuri Cidade

Comentários


Post: Blog2_Post

Formulário de Inscrição

Obrigado pelo envio!

  • Twitter
  • Instagram

©2021 por CIDADESCRITA.

bottom of page