A chuva eclodiu em minha janela. Uma fina camada de água se formou no parapeito, até transbordar e cair no meu tapete, fazendo um barulho irritante. Assemelhava-se a um metrônomo. Paralelo a tudo, fiz do meu mundo a bituca de um cigarro, lutando pra não se apagar na umidade que instalava-se no ambiente. O último ar, o vento e o tenso sentimento de que não podia voltar atrás. A arma em minhas mãos: caneta. Uma escopeta de criações caladas e absolutas de si, dando vida há mais outros milhões de seres, cósmicos e terrenos, presos na cidade que mesmo fundei. Pensei em rasgar tudo e largar essa condescendência para com a mentira. Traguei o último suspiro, olhando as gotas se dissolverem em meio à sacada aberta. Escrevi mais algumas páginas sem parar. O “ploc ploc” infernal em meu tapete servia de relógio, marcando o compasso de mais uma sinfonia surda. Quando finalmente parei de escrever, minha mão doía. Odeio escrever à mão, porém as máquinas pareciam ter tirado o brilho da aptidão nata que tenho para textos. Suava. Engoli uma dose de uísque e catei o cigarro que estava apoiado na orelha e o acendi. É difícil se desligar dos personagens logo em seguida. É uma transmutação, na qual um ser habitante em mim, toma conta dos meus sentidos e desabafa páginas alegóricas sobre a vida, morte, sorte, e até mesmo sobre coisas que jamais vi, mas todas me parecem tão familiares. Entre um pingo e outro da goteira, pude escutar gemidos e monólogos desconexos. Até então tudo bem, normal me sentir meio alucinado após tantas páginas, porém não podia imaginar que aquele lindo corpo acabara de surgir no meio da sala, sentando-se à minha frente. Uma mulher negra ébano, com os olhos verde esmeralda e a boca rosada. Usava um vestido branco, leve e trazia um grande cabelo encaracolado, que mais parecia ter sido desenhado em cima de sua cabeça, formando uma espécie de coroa. Sentia-me na presença de uma rainha. -E aí? Já terminou? – perguntou-me ela. -Não… Sou uma farsa. Escrevo de maneira incompleta. Sempre falta algo a dizer. Mas não encontro em nenhum lugar. Talvez esse seja meu limite. -Não diga besteiras. – e riu – Você sabe do que precisa e com certeza como dizer, mas talvez tu seja teu próprio obstáculo, meu caro. Tenho algo para lhe mostrar. Entretanto peço que sinta tudo que você viver a partir de agora. -Mas que porra é essa? Nem sei teu nome. -E nem eu o teu, pois sempre fizestes questão de escrever sem citar o próprio nome. És teu personagem principal, que ninguém conhece. As pessoas leem suas palavras como se fossem delas. A personificação de si mesmo nunca existiu. Então, meu amigo, prove sua existência. Me pegou pela mão e atravessou a porta. A cabeça logo rodopiou e me vi sozinho entre os corredores. Porém, não parecia ser os corredores do edifício onde moro, mas sim um cortiço escuro, úmido e fedorento. Pude jurar que tive que desviar de alguns ratos, enquanto caminhava desorientado. Uma luz negra iluminava o fim da passarela. Não tinha a mínima noção do que fazer. Acendi um cigarro e fiquei hesitando em abrir uma das portas. Não podia precisar o número exatos de entradas, pois o lugar não fora construído sob medida. A prédio era uma espécie de amontoado de pequenos quartos que foram feitos conforme ia precisando de espaço. Aproximei-me da porta que estava mais à esquerda de onde estava. Parei diante dela, soprei a fumaça, como se fosse uma espécie de simpatia. Nisso, escutei risadas. Curioso com aquele som fino e infantil, enfiei meu olho na fechadura. Para minha surpresa, não vi cena alguma. Um olho negro avermelhado me encarava de volta. -Porra do caralho! – saltei pra trás. Esbarrei em um móvel que não estava ali antes. Quando dei por mim, não era mais o corredor que me cercava, e sim um quarto. As paredes eram vermelhas pela luz que refletia dos abajures. O silêncio pairava. Havia apenas uma cama de casal, arrumada de maneira simples, uma TV ligada fora do ar, um telefone de parede e uma porta que dava em um banheiro minúsculo, além da cômoda de madeira onde havia esbarrado. No fundo, haviam cortinas, então corri e abri a janela. Enfiei logo meio corpo para fora e busquei alguma visão familiar. Nada. Me encontrava acima das nuvens. As ruas eram grande bolas de material esbranquiçado, pairando como uma penumbra leitosa. Impossível enxergar algo, tampouco afirmar quantos andares estava do chão, se é que isso era possível. Desesperado, olhei para o céu e vi somente o teto de madeira escura e com sinais de mofo. Pensei ter finalmente surtado. Assim, tentei ir ao banheiro jogar uma água no rosto para ver se voltava a raciocinar de forma concreta. A água refrescou as retinas e os poros de minha pele. Passei as mãos na face e respirei fundo. Ao erguer a cabeça em direção ao espelho, nada refletiu. Estava embaçado, mas não havia sinal de ter água quente naquele lugar, pois aquele cômodo parecia estar mais frio do que o outro. Passei a mão no espelho, e minha visão embaçou. Aparentei cansaço. A cabeça ia explodir de tanto fluxo de pensamentos e imagens bizarras que aquele lugar proporcionava. Saí do banheiro e abri o frigobar que havia perto da cama. Haviam algumas garrafas de vinho barato. Bebi no bico, procurando um novo anestésico. – Não consegue ficar longe dos seus vícios, não é? – perguntou-me novamente a bela dama que havia me visitado. – Vai se foder. Tô nem aí. Só me responde que lugar é esse? – Olha a boca, rapazinho. Relaxe, a sobriedade aqui é artigo de luxo. Beba. – me ofereceu uma dose de um cantil prateado que tinha. – Que tem aqui? – Balancei o cantil. – Sua alma. Olhei com desprezo e engoli tudo de uma vez só. Aquilo parecia álcool puro, queimando a garganta e cada centímetro de mucosa por onde passava. Sentia o calor dos 7 infernos, tonteava em meio a umidade que tomava conta do lugar. – Forte, né? – Ela riu e continuou. – Sente-se aqui. – apontado para seu lado na cama. Não consegui responder, apenas me sentei na beirada e olhei para os olhos verdes da moça. – Por que estou aqui? Eu só desejava escrever a melhor história do mundo. Um lugar onde fosse reconhecido por quem sou, e não pelo que aparento ter. Às vezes é tão difícil sair na rua e não sofrer com os tiros que cada olhar dispara na minha direção, ou até palavras meramente pronunciadas para desmotivar minha existência, enquanto caminho com meus escritos para vender em algum lugar. Por que? Por que tanta densidade naquilo que deveria ser tão belo e aceito? – Desabafei. – Talvez finalmente você tenha escrito aquilo que mais queria. Não só de glória vive a arte, infelizmente o tom divino da expressão é tido como vagabundagem ou mero drama daquele que questiona a si mesmo. Você não é como os outros, meu caro. – Mas esse é o problema! Eu quero ser igual aos outros e ter meus sonhos rasos e profanos realizados da maneira mais simples de despercebida. – A que custo? Abdicaria de sua agonia diante da sabedoria que seus olhos exercem ao marcarem o lugar em poucos minutos? Ou do seu ótimo senso de memória para detalhes invisíveis aos que preferem as sombras projetadas na parede da caverna? Trocaria sua ansiedade e surtos depressivos, quando sua criatividade transborda em suas poesias? – Disse-me encarando fortemente. Fiquei sem resposta. – Talvez a ignorância seja mesmo uma benção, querido. Mas num mundo onde a cosmologia é distorcida e manipulada, é na perdição que você encontra seu templo. A sua vida jamais seguirá a rotina de todos aqueles que você considera realizados, pois estes te devoram com olhares e rancores produzidos por eles próprios contra sua existência. – E como pratico essa resiliência toda, mulher? Minha cabeça parece que vai explodir! O mundo quer me devorar e já não encontro forças para me segurar pra fora da boca. – Escreva, como se nunca fosse parar. Vomite tudo nas folhas! Ponha pra fora tudo que você é. Tanto o ódio quanto o amor lhe confundem com suas similares intensidades, mas jamais a haverás de encontrar semelhança entre a sapiência e a ignorância. Encare seu pior adversário! – E onde ele está? Me diga! Por favor. Ela riu, piscou os olhos rapidamente e pediu para que olhasse novamente pela fechadura. Aproximei-me novamente da porta e coloquei novamente o olho pela abertura. Demorou para que a imagem criasse foco. Mas aos poucos percebi meu inimigo parado no meio da sala. Da minha sala, do meu apartamento e de tudo que criei. Quando a figura virou de costas, eu encarava uma versão distorcida de mim, completamente em surto ao colocar fogo em todos os meus papéis. Arrombei porta com um chute E me atirei sobre aquele indivíduo. -Morra comigo! – Disse ele me puxando para as chamas, enquanto ria em surto. -Não. Você que vai aprender a viver comigo. – levantei ele do chão ainda agarrado em mim em meio às chamas e saltei pela janela. – Eu não tenho mais medo de cair com você. Mas e tu? Está pronto para testemunhar minha Ascenção? Batemos no chão provocando um som abafado. Tudo escureceu enquanto eu ria, vibrando com a queda. A cena estilhaçou-se feito um espelho que havia sido amaldiçoado. Mas dessa vez, os cacos me refletiram por inteiro, bem no meio da minha sala. O cheiro de queimado que havia, era apenas do meu cigarro. A chuva havia passado. Sempre fui minha tempestade, caindo sobre a própria cabeça. Mas chegou a hora de chover e relampejar contra tudo e todos que tem medo de trovão. A previsão de minhas páginas alertam: Sou vendaval.
Yuri Cidade
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