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Foto do escritorYuri Cidade

A máscara

Mesmo horário. Abri os olhos e o teto branco se fez de horizonte. A cabeça automaticamente começou a processar meu dia, como se fizesse uma lista das tarefas a serem cumpridas. Calcei meus chinelos e fui até a pia, lavei o rosto, escovei os dentes e como quem coloca um óculos, coloquei-a sobre minha face. A máscara. Moldei os cantos, e até mesmo os frisos e rugas, para que ninguém percebesse suas imperfeições. Nunca me senti como um super-herói, tampouco com poderes ocultos. Na verdade, a máscara só me fazia ser normal.

Me vesti, desci as escadas e rumei à rua. Encarei o mundo, e ele me recebeu de volta. Fui caminhando para o trabalho e, durante o trajeto, fui cumprimentado por todas as pessoas que me reconheciam. Eu agradava a todos. A máscara me deixava imune a rejeição e a negativa. Funcionava como um piloto automático super seguro, no qual eu só tinha que respirar. Pensar se tornava dispensável, visto que ninguém ligava para o que eu dizia, apenas para o que eu aparentava. Quando a retirava, me sentia frágil, disperso, confuso, como se a realidade desabasse sobre minha cabeça.

Aquele dia trabalhei como se o tempo fosse um piscar de olhos, respondendo a todos com: “pode deixar” e “sim, senhor”. Mas algo, no fundo, me incomodava. Algo que eu não conseguia ver, ou talvez não quisesse. O relógio já tinha andado as horas necessárias para que eu deixasse o escritório, porém fiquei até mais tarde trabalhando em coisas que nem lembro. Desci as escadas do prédio e fui embora. A rua estava vazia. Me senti incomodado. Preso no vazio. Nenhum olhar, nem um elogio, uma carícia, nada. Estava só. Ninguém me via.

Cheguei em casa com uma agonia da morte. Fechei a porta, abri uma cerveja e retirei a máscara. O alívio rompeu-se pelas minhas terminações. Era somente eu e a minha casa a refestelar os pensamentos aleatórios. A calma voltara pro seu lugar. Mas como já era relativamente tarde, fui dormir sem me deixar pensar muito.

No outo dia, a mesma rotina, o mesmo trajeto e a mesma máscara. Como era sexta-feira, meus colegas marcaram um happy hour no bar perto do escritório. Ficamos la bebendo até as 4 da manhã. De vez em quando eu ia até o banheiro e retocava a máscara, deslizando meus dedos por suas terminações, afim de reparar minha aparência. Me olhava no espelho e me sentia “o cara”. Voltava à mesa e as mulheres me olhavam, os homens queriam ser meus amigos, trocávamos elogios, mas nem sabíamos nada uns dos outros.

– Você é uma pessoa incrível! Olhem esse porte, esse vigor, essa inteligência que você transparece. É digno de frequentar os melhores lugares. Você tem uma classe natural, amigo. – me dizia um colega de trabalho.

Eu não gostava muito dele. Era um sujeito mesquinho, incrivelmente grosso com seus subordinados e ainda por cima incomodava todas as mulheres do escritório com piadas machistas. Mas algo em mim respondeu automaticamente.

– Muito Obrigado, Carlos! Eu queria mesmo era ser igual a você! Você sim é uma pessoa fantástica. – Aquilo simplesmente pulou da minha boca. Não liguei. Pensei comigo: “só quis ser gentil”.

Fui embora. Cheguei em casa tão bêbado que dormi de máscara mesmo. Quando acordei, pra minha maior surpresa, já era segunda-feira. Espantado, comecei a martelar como fora possível eu ter dormido dois dias seguidos. Fui juntando pequenas peças daquele quebra-cabeça: minhas roupas foram lavadas, minha casa estava em ordem, os jornais estavam sobre a mesa, tudo no seu devido lugar. Ainda atônito, puxei meu celular e comecei a ver as mensagens que havia recebido. Por incrível que pareça, eu tinha dialogado com mais ou menos umas 20 pessoas, marcando eventos, transas, passeios, conversas. Minha vida não havia parado, mas a dúvida  ainda permanecia: por que eu não me lembrava de nada?

Alguns flashes depois, comecei a aceitar de que era apenas uma perda de memória repentina por conta da bebida ou cansaço mesmo. Não dei bola. Me olhei no espelho e percebi que ainda estava com a máscara. Eu tinha passado o final de semana todo com ela. Porém, não enxerguei problemas quanto a isso. Até deixei de lado a perda de memória, pois se estive o tempo todo com a máscara, eu estive bem.

Desci correndo as escadas e fui pro escritório. Lá chequei minhas redes sociais e comecei a perceber que eu havia saído em diversas fotos com pessoas que não sou próximo, até mesmo de pessoas que nem conheço. Conversei intimamente, dei e recebi conselhos de gente que nem mesmo sabia qual era meu sobrenome. Senti um embrulho no estômago. Mas meus colegas vinham até mim, conversavam e eu os respondia sempre com um sorriso no rosto, dando-lhes exatamente a resposta que queriam ouvir. Minha boca não traduzia o que meu cérebro pensava. Desorientado diante de tal situação, fui ao banheiro e a última coisa que eu lembro foi de ir desmaiando aos poucos.

Acordei em casa com o despertador batendo o mesmo horário de outra segunda-feira. Dessa vez, um ano pra frente. Confuso, chequei a data pelo meu celular e a mesma estava correta: havia se passado um ano. Saí do quarto desesperado e notei que não estava mais no mesmo apartamento no qual sempre morei. Um calafrio me corria a espinha. Vaguei pelos cômodos e descobri em uma gaveta, papeis que comprovavam que havia comprado aquele apartamento faziam 3 meses. A situação ficava mais bizarra em cada nova ação que eu fazia. Eu remexia um presente desconhecido de um passado que não vivi. Ou pelo menos não lembrava de ter vivido. Haviam novas roupas, novos amigos, novos móveis, porém não recordava de onde veio tudo aquilo. Desabei a chorar de desespero. Sofri em cada palavra que troquei com as pessoas que nem mesmo sei quem são. Não havia memória. Não havia um sentimento sequer que me lembrasse de ter vivido aquele ano.

Totalmente desorientado fui ao banheiro. Olhei no espelho e um estalo me lembrou de que ainda estava com a máscara. Retirei-a com muito esforço e olhei novamente para meu reflexo. Porém, já não me reconhecia mais.

Yuri Cidade

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