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Foto do escritorYuri Cidade

Alegria nas pernas

“Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos…” (Nelson Rodrigues)

Somos feitos de inúmeros fatores. Ignorar certos fatores para simplesmente parecer intelectual em um grupo de egos, é no mínimo irresponsável consigo. Nunca fui de agradar. Talvez por isso eu escrevesse tanto sozinho e ficava calado em alguns lugares. Porém, um lugar que me traz o gosto de infância e juventude, é a beirada de um campo de futebol.

Reconheço todos os defeitos e consequências que o mercado do futebol traz aos estádios e aos cofres públicos. Mas nem por isso deixo de assistir meus jogos de quarta a domingo. Vivemos sempre em um mundo de dois lados.

Me lembro de uns 15 anos atrás, quando dei aula de literatura para uma escola de bairro. Coisa pouca. Literatura iniciante, coleção vaga-lume e crianças até a oitava série. Confesso que não é tão fácil, num mundo de tantas distrações, fazer que uma criança se interesse por livros. Mas um menino em especial me intrigava. Era sempre o que se atrasava pra aula todo dia, pois jogava bola antes. Porém, era o que tirava as melhores notas e destacava-se especialmente em minha matéria.

Certo dia, fiquei sabendo que ele frequentava uma escolinha de futebol para crianças carentes da comunidade. Fui até lá para assistir um jogo de um campeonato entre escolinha e fiquei perplexo com a habilidade do garoto. Jogava como um craque, tendo apenas 12 anos.

Após o término da partida, fui até meu aluno para parabenizá-lo.

– Pô, Jorginho, eu não fazia ideia de que você jogava tão bem… – mas ele me interrompeu nervosamente, baixando a cabeça e disparando pra fora do lugar deixando apenas um “obrigado” apressado.

Estranhei. Perguntei sobre a família de Jorginho para a direção do colégio, e nenhum deles me sabia informar ao certo quem eram, deram-me apenas um endereço incompleto.

Peguei minha bicicleta e fui até o local em questão. Deparei-me com um barraco, caindo aos pedaços e nos confins de uma boca de fumo. Crack, maconha, cocaína, tiro, bala, violência, desespero, enfim, todos os quesitos rotineiros de uma favela brasileira, largada ao descaso. Jorginho sobrevivia como podia no meio daquilo tudo. Sua bola era como uma fuga, onde o menino era rei e o estádio lotado gritava seu nome.

Um pai acoolotra, uma mãe refém e dois irmãos que saíram de casa para tocar uma filial do comando do morro em uma quebrada vizinha. Nada além do que se passa na família tradicional brasileira.

Desde aquele dia então, fiz de tudo para Jorginho se firmar na escola e no futebol. Ele estava cada dia mais afiado. E quando fez 14 anos, um olheiro do Santos o descobriu.

Jorginho saiu de casa, foi para São Paulo, onde morou e terminou de crescer na moradia que o time cedia aos garotos. Ele me escrevia feliz da vida, pois tinha conseguido largar o peso de seu azar em não ter nascido na parcela mínima privilegiada da população brasileira. Contava-me sobre seus jogos, sempre que pudia eu ia até Santos para vê-lo jogar. Era como se fosse seu padrinho. E eu gostava mesmo daquele moleque.

Enfim, Jorginho tornou-se Jorge. 18 anos, Camisa 10 do Santos, seleção Sub-20 e unanimidade como grande revelação do campeonato brasileiro. Um fenômeno. Tinha a magia do povo tupiniquim. Seu jogo era como assistir a um evento artístico de bateria de escola de samba. Jamais perdia o tempo e o compasso da jogada, escondia a bola e deixava os adversários furiosos com tamanha habilidade.

Assim, o contato ficou cada vez mais escasso. Entrevistas, eventos, dinheiro, mulheres, facilidades na palma de sua mão e a sensação de estar preenchendo tudo que lhe fora suprimido na infância. Havia chegado ao céu. Eu me sentia com o dever cumprido como educador e humano.

Nesse lapso de tempo, uns 2 ou 3 meses sem notícias de Jorge. Apenas acompanhando seu sucesso pela Tv. Eu havia saído do interior e ido morar em São Paulo. Dava aulas numa faculdade e sempre que podia ia nos jogos.

A vida era boa, para ambos. Mas sentia que talvez Jorge deixava escorregar algo. E então, vem a minha mente aquele domingo a tarde. O sol batia de encontro aos óculos escuros que usava. A cerveja nem gelava. Fumava. São Paulo e Santos pelo campeonato brasileiro. Em plena Vila Belmiro completamente lotada. Eu estava perto da beirada do campo. Quando Jorge saiu do túnel, com seus companheiros perfilados e uma minha de mãos dadas a ele, me viu sorrindo e respondeu de volta. Pediu a benção, fiz sinal de positivo e falei no ar:

– Arrebenta, moleque.

Ele sorriu e disse algo como se houvesse tido uma premonição.

– Obrigado por me dar isso tudo, professor.

O calafrio bateu rapidamente no pescoço. Acendi um cigarro atrás do outro nos primeiros 45 minutos. 0x0. Clima de guerra em campo. Apesar de Jorge flutuar pelo gramado, a bola não entrava e as faltas o perseguiam. Intervalo.

Fui ao banheiro, mijei e voltei pro meu lugar. O jogo recomeçara. Seguiu em um ritmo frenético. Depois de 37 minutos e 43 segundos o jogo parou por causa de uma falta violenta na entrada da área. Vermelho pro zagueiro São Paulino e maca para o atacante santista. Jorge, como meia de ofício, pegou a bola e posicionou para a cobrança. O goleiro do outro lado, ajeitava a barreira para diminuir o ângulo de Jorge. Ele sabia que o rapaz tinha uma canhota certeira. Soou o apito. Autorizado Jorge. O estádio havia emudecido com o nervosismo. Mas tal preocupação se dissolveu e transformou-se em gritos de gol e comemoração. Jorge botou a bola na gaveta. Zico teria inveja daquela falta. O moleque era brasileiro de verdade. Do terrão ao tapete gramado. Em agradecimento a torcida, reverenciou-a de maneira elegante e apontou para o escudo em seu peito.

O jogo terminou em 1×0 e o Santos havia disparado na tabela. Surgiam rumores de que grande clubes europeus tinha interesse na contratação de Jorge quase que diariamente.

Logo após esse jogo, ele me ligou e conversamos por certo tempo. Contou-me sobre suas conquistas e dislumbres. Absorvido pelo luxo que nunca havia tido, despediu-se com: “Obrigado, professor. Aprendi como se ama um pai de verdade.” Desligou e foi para festa de comemoração dos jogadores e convidados.

Como tudo no Brasil, sempre há um espírito de porco para trazer o caos para quem nunca teve paz. Em meio aquela orgia toda, Jorge foi bebendo e se rendendo ao tesão. Celulares, câmeras e aparelhos eletrônicos ficavam na entrada. Nada era filmado lá. O que se fazia, nunca aconteceu.

Naquela noite tive um presságio. Não dormia. Fumava compulsivamente. Tentei ligar para Jorge, mas só caixa postal. Por fim, capotei. Enquanto que Jorge, há alguns quilômetros dali caia no velho golpe que a inveja desperta. Um colega de clube, mais velho, que havia perdido certo espaço depois da chegada de Jorge, mostrou ao garoto o prazer mais perigoso para quem tem dinheiro e acesso a tudo: Cocaína.

Jorginho cheiro, fumou, bebeu, trepou, fez e aconteceu naquela noite. Saiu de lá completamente alucinado e pegou seu carro.

Acordo com a seguinte notícia: “O atleta Jorge, do Santos, envolveu-se em um acidente com uma vítima fatal. O jogador, completamente alterado, acabou por perder a noção de onde estava e colidir com um carro de passeio que vinha na contramão, resultando no óbito da vítima Jéssica Medeiros. Jorge está no hospital, mas passa bem.”

Peguei meu carro e fui até o hospital. Me impediram de entrar. Durante três dias eu ia ao maldito lugar e era proibido de entrar. Jorge estava sob custódia. Foram encontrados 100 gramas de cocaína em seu carro. E seu teste antidoping havia dado positivo para a mesma substância. Os jornais estampavam as notícias em suas capas e emissoras.

Nenhum advogado iria livrar a cara de Jorge, tampouco ele teria como provar que havia sido induzido a consumir drogas e que tudo aquilo que havia em seu carro não era seu. Fodeu.

Na quarta vez que fui ao hospital, além de não poder entrar, me conduziram a delegacia. Jorge fugiu. Não quis segurar a bronca de cadeia e tudo aquilo que enfrentaria caso estivesse naquela mesma favela de sua infância. Não aceitava que sua queda fosse verdade.

Nunca mais vi Jorginho, ou Jorge. Era a matéria mais comentada no Brasil. Até que em um plantão que irrompeu o horário da novela, noticiava o desfecho.

– Jorge Luis Pereira, atleta do Santos FC, fora encontrado em um imóvel próximo ao subúrbio. Segundo os policiais, o jovem possuía uma arma e disparou contra eles. Em meio ao tiroteio, o jogador acabou sendo atingido por um tiro e faleceu.”

Filhos da puta. Malditos. Jorge nunca teve arma e tampouco atirou. Negro, de origem humilde que conquistou um império, o qual a burguesia jamais aceitou em seu meio social, morreu executado com um tiro a queima roupa da cabeça. Sem pólvora em seus dedos, borbulhou sangue pela boca e morreu solitário e sem aplausos.

Caso esquecido, policiais “afastados” e a justiça correndo lentamente com um processo sem urgência nenhuma. Apagaram-se os refletores e o estádio silenciou. O suingue deu lugar ao sangue. E no dia seguinte, a torcida já tinha outro ídolo, o jogador outro clube, o cemitério mais um defunto e a estatística mais um número. Depois disso, nunca mais fui a um estádio. Assisto os jogos pela televisão, lembrando de como Jorge mudou sua história mas voltou ao futuro que seu passado havia sentenciado desde que nasceu. Não adiantou de nada sua fama, morreu pelas mãos daqueles que juraram-lhe segurança. Final do jogo no Brasil: nunca saímos do 0x0.

Yuri Cidade

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