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Chuva

Como se o dia fosse invertido, eu dormia pela manhã e caçava a noite. Mas em vez disso, numa sexta-feira, cismei de ficar por casa. Comprei cerveja suficiente pra calar a boca dos vizinhos, uma garrafa de uísque pra fingir falar escocês e três maços de cigarro porque já estava cansado de respirar poluição indiretamente. Se é tal coisa ia me matar aos poucos, não fazia mal, não tinha tenta pressa assim. Sentei-me no sofá, abri a primeira e troquei os canais como se procurasse os anais da hipocrisia pra aguentar meu porre. A TV aberta me cansara, então fechei os olhos e meu corpo, tornando a encher o copo e me dispus a escrever ao som dos Novos Baianos. Porém minha caneta havia travado. Meu trago parecia ter me travado exatamente naquela sexta-feira vazia e sem lua. Andei alguns passos em volta de si e da mesa, procurando as palavras que fugiam do meu quarto. Vi as tais, pulando em direção chão como vítimas do onze de setembro, nas quais preferiram suicidar-se do que sofrer o impacto. A ortografia fugia do meu impacto. Quem dera eu ter feito um pacto com o capeta e tivesse ficado rico com as letras. Mas delas só tivera a companhia. Mas naquela noite até minhas fieis amigas resolveram tocar um puteiro sem mim. Malditas assim, foram fugindo uma a uma. Pensei: “devo ter bebido algo diferente e estou começando a ver coisas.” Varias vezes minha mente me enganara, mas meus olhos sempre foram atentos a realidade. Fingi que tudo era apenas miragem de porre, e desatei a correr a lista do meu celular em busca de preencher o final de semana. Mas o aparelho simplesmente derreteu como mel quando tirado do seu pote com uma colher. Eu procurava uma mulher e so encontrei o bizarro. Meu carro havia quebrado e seria um tormento maior ainda tentar sair daquela distopia a pé. Ao invés disso, fui ao banheiro e tomei uma ducha fria, pra ver se a frieza da realidade me congelava no comodismo da rotina novamente. Mas a àgua saiu quente. Saí do banho, me enxguei e fui andando pelado até minha sala. Pra minha maior surpresa, a mesma estava lotada: – Porra! Como todo mundo entrou aqui? – exclamei me cobrindo com um pano de prato velho que eu deixara pela mesa. Nem uma só resposta veio. Nem mesmos os olharem me miravam. – Eu estou falando com vocês! – gritei mas parece que nada me ouvia. Dopado de si mesmo, desesperado para ser notado, joguei a toalha de louça no chão e mijei no tapete. Bem no meio do aglomero de gente que lotava minha sala, bebiam meu uisque e fumavam meus cigarros. Porém, nenhum movimento foi esboçado. O traçado daquilo tudo se distorcera de uma maneira que a minha sexta-feira transformou-se numa festa de família de fim de ano, na qual eu era aquele tio que passava da conta e começava a ser ignorado pelos demais pra ver se parava de fazer merda. Era incômodo. Era insuportável a sensação de invasão e da mais pura indiferença pros meus atos. Meus fardos sempre foram pesados, mas nenhum deles havia tomado o controle. Naquele momento eu atirei meu controle da TV na parede, tomei meia garrafa em um gole pra matar a sede de sanidade e ri. Ri como se quisesse chorar. Gritei, pulei, quebrei pratos, atirei cigarros para cima, tentei fazer de tudo pra quebrar o clima de surrealidade. Mas nada que eu fiz teve resultado. – Enlouqueci! Finalmente eu enlouqueci de verdade e não como em meus textos. Malditos contextos que escrevi. Malditos sejam todos vocês personagens que tomam meu uisque e cagam no meu banheiro. Vão pro inferno junto com as palavras que pularam da mesa. Mas saibam, que não há reza a qual entoem que me trará de volta. – Cuspi no chão e engoli em seco o resto de saliva. Naquele momento todos olharam pra mim como se tivesse lhes condenado à morte. Para minha sorte, o clarão do sol anunciou que a madrugada havia terminado, e junto com ela, meus delírios. Porém, mesmo em meio ao nascer de um sol mais resplandecente que podia se ter em um sábado, a chuva desabava incessantemente. Rangi os dentes e fui até a rua para ver se um banho de chuva acabava com minha bizarra ressaca. Cruzei o jardim e fui até o meio do terreno. Por alguns instantes estava sereno, pelo como se estivesse no auge da sobriedade. Senti-me distante do enclave que se resumiu minha intrigante noite. Em um utópico apego ao nada, olhei pra cima em sinal de prece introspectiva, mas no céu a minha vista não havia uma só nuvem que justificasse todas aquelas gotas. O vento fez a curva, e no céu eu pude ver que as gotas não viam de nuvens, e sim de dois enormes olhos, dentre os quais escorriam as lágrimas que estalavam no solo como as gotas de um temporal. Tais olhos, assim como as suas lágrimas, eram os meus ao observar si mesmo no fundo de um copo.

Yuri Cidade

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