Uma traiçoeira mania de coçar o lábio quando estava nervoso, me irritava profundamente naquele filho da puta. Nem sei como meus caminhos se diluem pela realidade fazendo-a parecer uma grande distopia.
O fato é foda. Mal conseguia pagar o aluguel do apartamento onde morava. Folhas e mais folhas espalhadas pela casa, mas nenhuma servia ao menos para limpar o rabo. Não emplacava nada e o jornal havia me demitido. Acabei por escrever alguns roteiros para filmes amadores na internet. A grana era irrisória. Entretanto, tal atividade levou meu nome até um diretor e dono de uma produtora de filmes. Porra! Era minha chance de pelo menos frequentar um set de gravações de verdade. Enfiei as roupas em uma mala. Deixei o lugar e fui tentar a sorte. Cheguei no Rio e senti a cidade fervilhar. O asfalto e a areia apostavam qual era mais quente para se andar. Aos pulos e indicações, consegui achar o endereço da tal produtora. Ok. Não esperava que fosse Hollywood. Mas também não precisava ser um motel cafona. Entrei pela porta da frente. Era uma espécie de recepção. Fui atendido por uma moça loira, de uns 20 e tantos anos, padrão de beleza capitalista machista, silicone em todas as partes que podia se ver (realmente eram muitas) e uma voz fônica. – Boa tarde, senhor. O que deseja? – Boa tarde. Eu tenho hora marcada com o Ronaldo. Um reunião. – tentei falar as palavras que inspiravam confiança e seriedade. Ela pegou o telefone e rapidamente me anunciou. – Pode entrar por aquela por ali. Segui pela direção indicada e atravessei a porta. Um cara de uns 45 anos, com um copo de vodka com energético, as mãos trêmulas e um cigarro na orelha me esperava. Aquele era Ronaldo. – E aí, meu querido? Tudo bem? Senta aí. Vamos conversar. Realmente fiquei muito interessado nessa sua criatividade. Procuro gente assim. – Opa. Tudo sim. Poxa. Muito obrigado. Espero que cheguemos em uma parceria. – Sem dúvidas. Quer uma? – me ofereceu uma carreira de cocaína que esticou em cima de uma agenda. – Sabe como é. Relaxar um pouco. – Tentadora proposta, mas vou passar essa. – se eu apenas rejeitasse talvez ele pensasse que estava o julgando. E aí pra frente foi um frenesi maluco. A conversa fluía há uns trezentos por hora. Eu já estava íntimo do cara. Fumava na sala dele, bebia e quando finalmente chegamos a um valor de trabalho, percebi que nunca tinha visto um filme daquela produtora. Nem ao menos sabia da sua existência. Ronaldo me levou para conhecer as instalações da produtora e disse que ia me arrumar uma moradia provisória até eu conseguir me sustentar na cidade. Literalmente era um motel. Com umas áreas externas, academia, piscina, banheiras e afins. As coisas eram velhas, mas tinha seu estilo. – E é aqui onde fazemos as pessoas gozarem. – exclamou Ronaldo ao abrir a porta do estúdio de edição. – O cinema é um orgasmo constante, não é mesmo? – puxei o saco sem saber o que me aguardaria. – Adorei seu senso de humor, rapaz. Tem muito futuro aqui. O cinema pornô é a sua cara. Engoli em seco. Finalmente dei-me conta de onde estava. Pessoas seminuas, o motel, a cara de chefe de cartel que Ronaldo tinha e a parafernália de coisas sexuais que haviam pelo lugar. Juro que cogitei em desistir. Deixar que a moral falasse mais alto que o dinheiro, mas o capitalismo venceu novamente. Aceitei e foda-se. Tinha largado tudo e estava desesperado. As primeiras semanas foram o teste para meu cérebro. Escrevi três roteiros para o que Ronaldo chamava de cinema porncult: um “apicalipse” zumbi, um cliche de faroeste gay e, por fim, um hotel que alugava “orifícios” para os hóspedes. Sério, a única coisa que tinha um lado bom, era que eu podia escrever o maior non-sense do mundo, e mesmo assim ele ia concorrer a um prêmio. Pois realmente era superior a qualquer enredo da concorrência. Com o passar dos meses e de tantas ereções que podia se visualizar naquele lugar, faturamos bons prêmios da academia pornô, até mesmo americana. Porém, Ronaldo exigia cada vez mais coisas diferentes. Ideias extravagantes. E num dia desses me perguntou: – Garoto, o que cê acha que podemos inovar nos filmes? – Ainda não consegui visualizar sua pretensão atual, Ronaldo. – Mas sobre o que gosta de escrever? – Humanidade, existência, sociedade… – Me escreva o roteiro mais humano possível. Cotidiano de preferência. – Tem certeza? – Absoluta. Trabalhei a noite toda naquele roteiro. Peguei um dos meus melhores contos, transferi personagens, reescrevi partes, descrevi uma cena sexual poética, comparando as cordas de um blues ao violão com as linhas da vida e da lembrança. O orgasmo de uma memória boa. Ronaldo amou o roteiro. Porém, devido a limitação do equipamento, algumas coisas seriam adaptadas. Não reclamei. Estava feliz por finalmente escrever uma ideia original. Alguém me lia. Mesmo que não fosse do jeito que sonhei. Ronaldo trabalhou insanamente. Passava 3 dias a acordado, um dormindo, todos os 4 cheirando. Não queria a interferência de ninguém. Dizia ele que estava conectado com a arte e não podia deixar ninguém acompanhar as filmagens. Nem ao menos eu. Conheci a filha de Ronaldo enquanto ele se trancava no set. – E aí? Como cê veio parar aqui? – fumava um baseado apoiada na soleira de uma janela. – A vida quis me foder. Acabei no meio de uma orgia, ué. A poesia já não é vendida facilmente, bem como os filmes independentes. Falta espaço e oportunidade por aqui. – Deixe me ler o que cê escreve. Dei a ela um caderno que comecei a escrever quando cheguei na produtora. Era como meu desabafo para não escrever só lixo. Ela levou o caderno para ler a noite, com mais calma e sem alguém gemendo na piscina. Elisa era linda. Tinha mais ou menos minha idade na época, morena com os cabelos repicados e sardas embaixo dos olhos. A única imagem diferente e original daquele lugar. Trabalhava como administradora do pai, evitando que ele fizesse mais burradas. Na madrugada daquele dia, escuto batidas na minha porta. – Sou eu. Elisa. Abri a porta tropeçando, pois o sono me fazia ficar sem reflexos. – Aconteceu algo? – Sei lá. Só não quero ficar sozinha. Faz tempo que não há alguém aqui com quem eu possa conversar. – Bom, entre. Tem uísque, café, água e cerveja. Servimos-nos de uísque e fumamos na sacada. Ela realmente havia gostado do que escrevo. Principalmente, segundo ela, do que sou. Naquele beijo com gosto de cigarro e álcool, me apaixonei por Elisa. Mal dormimos. Tivemos a transa mais intensa que se podia sentir. Quando paramos, trocavámos olhares e risadas. Aquele motel teve sua noite cinco estrelas. No dia seguinte, Elisa arrumou-se no mesmo horário que eu e cada um foi para seus compromissos. Os meus ficaram resumidos em escutar um falatório orgulhoso de Ronaldo sobre ter feito sua obra prima. Elisa não saía de minha cabeça. Ronaldo fez uma puta divulgação sobre o filme. Uma sessão de pré-estréia foi organizada. Celebridades e afins do meio pornográfico estavam lá. Até mesmo eu usava um smoking e ostentava a mente por trás do roteiro de um filme pornô que eu nem tinha assistido ainda. Minha vida caiu segundo por segundo daquele filme. Era apenas uma cena. Dois atores. Nenhum consentimento de gravação. O filho da puta tinha filmado minha noite com Elisa, sua própria filha. Aos gritos as pessoas me parabenizaram, enquanto entrei em choque e tive o reflexo de apenas acender um cigarro e sair do cinema. A pré-estreia rendeu muita grana já. Elisa correu atrás de mim na entrada, mas nem dei ouvidos. Segui pela calçada e peguei um ônibus qualquer. Vaguei pela praia e terminei por voltar ao motel pela manhã. Arrumei minhas coisas, ignorei Elisa por mais uma vez, peguei o dinheiro que sabia que Ronaldo guardava em uma gaveta, os quais resumiam-se a uns dez mil reais. O valor não era 1% do que Ronaldo ganharia com o filme. Não queria aquele dinheiro. Comprei uma passagem para a França e me arrisquei por lá. Passados dois meses, recebo uma fita sem identificação. Abri o pacote e havia um bilhete curto de Elisa. “Não precisa acreditar em mim. Mas eu sempre estive do seu lado.” Quase cai pra trás. O filme contido nela, nada mais era que as filmagens da festa de comemoração do lançamento daquela bizarrice sexual. Ronaldo, empresários, produtores e políticos em uma orgia colossal no motel, regada a drogas e extravagâncias. Elisa sabia de meu senso crítico e do meu tino para manchetes jornalísticas. Peguei aquela “bomba” em forma de filme e negociei com um jornal francês. Não quis uma bolada como prêmio pelo escândalo. Exigi que me contratassem e que pudesse assinar como autor da matéria. Uma oportunidade. A notícia explodiu. Um escândalo social parou o país com a minha assinatura embaixo. Logo foi abafado, obviamente. Ninguém foi preso ou perdeu cargos. Talvez tenham feito outra naquela noite mesmo, mas tive o gosto de ver Ronaldo falir. A produtora dele já era. Não era blindado como seus convidados. Ficou tão fudido que acabou morto numa boca de pó. Pago o preço de continuar fora do Brasil. Um exílio pelo escândalo. Quanto a Elisa, vez ou outra manda uma carta de algum lugar do mundo também. Sexo vende corpos e jornais.
Yuri Cidade
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