A mente humana está fadada à ilusão. É que digo pra mim todo dia em que levanto pela manhã e acendo um cigarro em jejum. Nada mais do que meras utopias nos fazendo crer que desejos sociais preencherão o vazio de nossos peitos, sob a ótica das relações de aparência. É como o endeusamento do matrimônio. Só mais um conceito de loucura distorcido de que a felicidade alheia depende do seu entendimento e dos laços sagrados, fazendo com que a porra que você goza seja responsável por dar vida à 7 bilhões de pessoas nesse majestoso planeta terra. Estamos amontoados na loucura de acreditar que a sanidade é um privilégio de poucos. Nem fodendo. Somos todos completamente esquisitos e suscetíveis a cometer atos que espantam as nobres tradições seculares de uma sociedade conservadora. Digo esse maldito monólogo para mim todo dia. Minha solidão é meu lar, minha puta e meu vício.
Aprendi tudo isso com minha prima Verônica. Linda de se ver, recatada, pronta pra ser a próxima dama da high society brasileira quando sua mãe finalmente caísse 7 palmos abaixo da terra. Como se não bastasse, Verônica foi sempre uma aluna exemplar, sendo uma das mentes mais inteligentíssimas que a academia teve o prazer ter em seu ambiente. Era o orgulho da família.
Porém, ao contrário de Verônica, eu sempre fui a ovelha negra da família. Tanto que fui morar distante de meus parentes, me comunicando apenas por carta ou telefonemas avulsos. Eu realmente evitava telefones. Odeio aqueles aparelhos metálicos em meu ouvido, com uma voz distorcida do outro lado. Fora que você tem que ficar segurando tipo o caralho de alguém que vocês está, impacientemente, esperando gozar. Sempre preferi a caligrafia. Então, a única pessoa que se dava ao trabalho me escrever era Verônica. Sempre fomos próximos desde criança. Adorava ler suas cartas contando como a vida andava sem mim naquela pacata cidade.
“Querido, primo.
Sinto saudades suas. Mas tenho uma novidade maravilhosa: Estou apaixonada. Conheci um rapaz lindo, inteligente e de boa família. Meus pais estão nas nuvens. Ele se chama Ricardo. Estamos namorando como condizem as tradições. Anseio seu retorno para apresentá-los. Tenho certeza que irão se dar muito bem.
Com amor, Verônica.”
Percebi que o tempo havia passado de fato. Aquela doce e sonhadora jovem agora era uma mulher com desejos de constituir família. Ela havia chego naquela fase que evito até hoje: Como nossos pais. Entretanto, Fiquei feliz por ela, afinal foda-se o que as pessoas desejam, importante é ter suas doses de felicidade. E de todas as minhas raízes genealógicas, Verônica foi a única que nunca julgou o estilo de vida que escolhi, não seria justo que lhe julgasse. O restante da família apenas dizia que eu era um desgarrado. Caguei. Aliás, sempre gostei de ser um ponto fora da curva. Os loucos, vilões e pessoas de mentes quebradas sempre me foram mais atrativos do que o senso comum.
Bom, o tempo foi passando, mais ou menos uns 4 anos, e as cartas de Verônica foram sempre presentes em minha caixa de correio. Porém, nas últimas vezes, comecei notar um tom tristonho em suas palavras, até que ela realmente me mandou um desabafo.
“Querido, primo
Estou confusa. Acho que minha relação com Ricardo desgastou. Com o tempo ele passou a se mostrar diferente daquilo que eu conheci. É machista, arrogante, controlador e num acesso de raiva, me ofendeu e me deu um tapa no rosto. Não quero isso pra mim. Ainda mais agora que conheci o irmão de Ricardo, chamado Rafael. Você não vai acreditar! Eles são gêmeos. Iguaizinhos. Porém com personalidades totalmente opostas. Rafael é muito mais doce e sensível que Ricardo. Realmente parece a história daquele livro do Milton Hatoum: Dois irmãos. São muito opostos. Ele também esclareceu que sempre sofreu com a índole violenta. Não quero mais isso. Terminarei com Ricardo.
Com amor, Verônica.”
Fiquei puto de raiva. Ora, um brutamontes batendo na minha doce prima. Que filho da puta! Uma moça tão especial e esse covarde fazendo ela de pano de chão. Minha vontade era de enfiar-lhe um cabo de vassoura no rabo.
Tentei ligar para minha Tia Helena, mãe de Verônica, para tomar parte da situação e ajudar a filha nesse momento, mas ninguém atendia aquela porra. Malditos telefones. Então, novamente troquei mais algumas cartas, desta vez aconselhando minha prima a largar o palhaço de vez e dar queixa na polícia. Mas a resposta que veio me trouxe outra grande surpresa.
“Querido, primo
Trago boas novas. Larguei Ricardo fazem 4 meses. Estou nas nuvens. A liberdade me domina. Quanto a ele, simplesmente me ignora e está comendo uma mulher casada que é sua vizinha. Não me importo. Problema dele. Aliás, tenho uma novidade surpreendente: Rafael, irmão de Ricardo, procurou-me outro dia na saída da igreja e se declarou pra mim. Disse que sempre me amou e tinha inveja do irmão. Que sofria dias e noites sabendo que eu estava me prendendo à um monstro. Ah! O Rafael é um sonho. Fiquei encantada com sua declaração e resolvi me entregar à paixão. No início, ambas as famílias não quiseram aceitar, mas tiveram que nos engolir, pois nosso amor transborda por todos os lados. Estamos noivos, primo! Estou muito feliz. Casaremos no começo do ano que vem. Mandarei o convite pra você em breve.
Com amor, Verônica.”
Puta que pariu. Foi exatamente o que pensei. Se não me bastasse toda a situação que ela viveu com Ricardo, ela vai e se envolve com o irmão gêmeo. Instintivamente imaginei um ménage entre minha prima e dois gêmeos. Uma cena perturbadora até pra mim. Eu escrevi e tentei telefonar para meus parentes, principalmente para tia Helena, mas não obtive retorno. Um inferno.
Mas, com o passar dos dias, após absorver tal informação, resolvi deixar meu preconceito de lado e escrevi de volta dando apoio à Verônica. Afinal, o que me importava mesmo é que ela fosse feliz e bem tratada. E pelo tom das cartas, Rafael era uma pessoa honrada e decente.
Porém, dias antes de embarcar para o casamento, tentei novamente me comunicar com o restante da família, porém tudo fora em vão. Somente Verônica insistia em se comunicar comigo.
E assim o ano virou e junto com uma garrafa de champanhe, recebo um convite branco com letras prateadas.
“Ao meu primo preferido e melhor amigo.
Venho por meio deste lhe convidar para o momento mais feliz de minha vida: meu casamento. Será dia 23 de janeiro, a partir das 18 horas, na igreja central. Não se atrase. Eu e Rafael aguardamos sua presença com grande entusiasmo. Amo você.
Com amor, Verônica.”
Mas que puta inferno. Eu odiava casamentos tanto quanto odiava telefones e ternos. E odiava ainda mais ter que voltar aquela maldita cidade, onde minha família nem ao menos fazia questão de me comunicar. Mas por apreço à Verônica, eu iria. Afinal, nem que fosse pra mandar meus parentes tomarem nos seus respectivos rabos, mas eu iria lá dar um grande abraço em Verônica.
Chegado o dia, um calor insuportável do ápice do verão, fui até um amigo e peguei um terno emprestado. Me enfiei no primeiro ônibus e parti rumo ao casamento do ano. O ônibus sacolejava, o banheiro fedia e pra piorar eu não podia fumar dentro da condução. Parece que algo sempre me impedia de voltar para aquela província.
Ao chegar na cidade, nada mudou. Tudo estava parado no tempo. Simplesmente aquele lugar parecia não andar na mesma velocidade temporal que as demais cidades. Era como se eu tivesse voltado no tempo. O silêncio nas ruas era ensurdecedor. Mas sentia uma nostalgia de voltar ao ponto onde cresci.
Caminhei até a antiga casa da minha tia Helena, e a mesma estava toda trancada. Presumi que já deviam estar todos na igreja.
Me escondi atrás de casa, troquei de roupa, pondo aquele terno maior que eu e fui andando pra igreja parecendo um defunto que levantou do caixão faziam 15 minutos. Não lembrava muito bem onde era. Parei no único boteco aberto e falei para um tiozinho que atendia no balcão:
-E aí, chefe? Me vê uma dose e pode me dizer se o casamento já começou?
Ele me serviu a dose com olhar estranho e disse.
-Não estou sabendo de casamento nenhum. O padre abandonou a paróquia há mais de 3 anos.
-Ué, mas minha prima Verônica se casa hoje…
-Filha da falecida Helena?
-Tia Helena morreu?
-Meu jovem, acho que você deveria ir até a igreja…
Engoli a dose de uísque e sai correndo pra paróquia. Não havia carros, decoração ou alma viva em torno da mesma. Pé por pé subi os degraus até ficar de frente pra porta escancarada. A poeira tomava conta do lugar.
No altar, vestida de noiva, com direito a véu, grinalda e bouquet, estava Verônica. Solitária, sorrindo e proferindo votos de fidelidade à ninguém.
Não tive reação. Não falei uma palavra. Virei às costas, sentei na escada e acendi um cigarro. Não quis saber o que tinha acontecido. Não me importo com o delírio alheio, afinal tenho ilusões demais para julgar as dos outros. Que Verônica casasse e fosse feliz com quem bem entendesse. Até mesmo com sua loucura.
Yuri Cidade
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