A noite já havia virado, beijando os lábios carnudos e secos da manhã. A leve claridade batia em nossa janela. A poeira flutuava nos feixes de luz que transpassavam as persianas. Era como uma canção bem feita. Um poema por si só. Porém, aquele par de olhos castanhos era a coisa mais linda que se podia avistar em menos de um metro de quadrado. Essa hora eu não podia mais mentir.
De todas as invenções malucas da humanidade, os fármacos são as bizarrices que te prometem sempre um bem estar absurdo com efeitos mirabolantes. Quanto mais problemas, mais remédios milagrosos. E como a humanidade não se cansa de buscar um novo vício, eis que inventaram uma nova obra prima da indústria farmacêutica: Um anulador de mentiras. Exatamente isso. Ele não te deixa mentir de jeito nenhum. E aquela noite, cansados de só foder e dormir, resolvemos testar aquela maldita invenção. Em cada dose, uma verdade diferente.
– A humanidade é escrota. – disse-me ela.
– E escrita. Escrota e escrita, graças a Deus – respondi
– E você não tem vergonha disso?
-Vergonha de que? Assumir a decadência é algo sublime. Render-se ao prazer, as inconstâncias, as tantas consciências alheias. Eu amo a humanidade, pois até em ser ruim, somos os melhores. Somos únicos.
– Issoé uma desculpa pra você ser como é.
– Óbvio!
– Tá vendo? Você é tão raso como qualquer outro, disfarçado de intelecto em filosofias egocêntricas e vãs.
– Profundidade é uma questão de estar afim de escutar o outro divagar sobre si mesmo. Se interessa à seu ego me achar profundo, você irá. Senão, qualquer teoria, por mais bem defendida que seja, é uma bosta. Assim agimos. Você, eu, Pelé, Cortázar e todas as pessoas desse planeta filha da puta. Isso é lindo.
– Lindo onde, seu babaca?
– É lindo porque é vivo e único. SIngular. Nada, por mais sublime ou desprezível que isso seja, se compara a individualidade mental e genética da verdadeira origem da humanidade. Isso vai desde meu desejo imoral de querer transar neste exato momento, naquela poltrona, enquanto acendemos um cigarro, até o seu desejo de que eu cale a boca, ou de ficar atirando verdades um no outro até cairmos si e ver que nunca haverá uma verdade real e concreta. Mesmo com essa bosta. – balancei o remédio – Todo mundo tem uma verdade diferente, essa é a verdade. Quanto vale saber da minha? E quanto lhe interessa a sua?
Com os olhos cravados em mim e com os dentes serrilhados, exalando a agonia de quem odiava escutar e gostar do meu discurso, disse-me de impulso:
– Você é um filho da puta!
– Verdade!
– Como pode? Você não ama ninguém?
– Sou apaixonado por tudo que se inclui no meu agora..
Ainda mais raivosa, ela tomou outra dose do “anti-mentiras”, olhou-me e disse.
– Eu estou aqui agora. E você?
– Onde você quiser que eu esteja. Desde que seja agora. Fodam-se. Eu sou o agora. Você é o agora.
– Porque diabos eu te amo, caralho
– Porque me faço a mesma pergunta todos os dias quando acordo ao seu lado.
Sorriu de leve. Baixou os olhos como se finalmente tivesse conseguido ouvir a verdade que queria. Aceitou a nossa humanidade, mesmo sabendo que um dia íamos cansar de trepar, conversar e dividir. Somente aquela sensação de que vivemos uma das sequência de agoras mais deliciosos de nossas vidas.
O silêncio fez o tempo parar inconvenientemente. Precisava de mais uma dose antes de começar a mentir compulsivamente. Estávamos nus de personagens ou fórmulas sociais. Não queria me desprender disso. E ela parecia precisar da verdade tanto quanto eu. Procurei uma dose para finalmente colocar tudo pra fora, mas ela, com voz de desânimo, apenas me respondeu:
– A cerveja acabou.
Yuri Cidade
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